quinta-feira

Não há vinte sem mil...

A meio da refeição (floco de batata com rodelas de azeitona), a voz grossa da mãe rompe o pesado siêncio com um surpreendente discurso, que passo a citar :

“Meus ricos filhos. Sabeis vós que a vossa mãe está a ficar veilha e cansada. Sabeis também que o fedelho que trago dentro de mim há quatro meses me dá muntas biqueiradas. Já na aguento más...Teinho que ficar en casa en repôso. Tendes que ir arranjar um trabalho mês filhos...”

Ouvido isto, hesitei antes de equacionar pensar se seria prudente sequer reflectir sobre a possibilidade de avaliar a pertinência de colocar uma questão à madre.
Enchi-me de coragem e perguntei:

“Mas minha mãe, não é isso que fazemos há já vários anos? Se bem me lembro, desde que pariu a Carmélia que a senhora nos obrigou a trabalhar. Aos cinco anos eu próprio já andava a acartar ma...(CLAP!!!!!)

Já se sabe...quando faltam os argumentos, a mão materna resolve a situação.

Joel, 10 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

Pedaço de Papel

Estava na eira a apanhar pinhas para a salada quando achei um velho recorte de um caderno debaixo de uma pedra. Não sei bem o que diz, mas parece-me ser giro...quatro linhas agrupadas em quatro blocos de texto, escrito numa lingua esquisita...

The lands where no one stands

Flying with a broken wing
To the lands where no one stands
Set your place in the highest mountain,
Where the fog ends and the moon is yours

Climb these hallow trees
Light your fire, enjoy your stay
Share your spirit with the rocks
Make no sounds, drop no tears.

Fall asleep and lock your thoughts
In your little box made of sun
Wake up, whisper to the forest
Sing a song you won’t forget.

Be proud of what you became
Never wish to return again
Cause in the lands where no one stands
Silence is a bullet, and you are the gun.

Frederic Marquez

joel, 7 de julho de 1970, Anarquim de Baixo

Alucinaço

Se soubesse o que sentes, sabia sentir a sensação de ser teu. Como a névoa aínda paira sobre os meus olhos, bebo outro bagaço.

E vão vinte e sete. Efeitos? Nenhum...

Permanece à superficie o sonho de te ter, lutando para não naufragar.

O tasco está polvilhado de borboletas que me sussurram o teu nome...
As moscas fazem vôos sincronizados, desenhando corações antes de se despenharem contra a luz anti mosquitos ( invenção de um homem cá da terra, Artur Engenhocas).
O som dos copos que se pousam sobre o balcão sincronizam-se com a batida do meu coração...
O velho rádio cospe repetidamente a canção de que me lembras...

Quim Fisgas, deixa-me vê-la...

Joel, 7 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

quarta-feira

Na savana...

Sentado na sombra de uma abacacheira, procuro encontrar na natura um rumo para a minha vida.
À minha frente, pasta um pequeno coelho. É estranho, mas aparenta não ter qualquer receio da minha pessoa (convenhamos também que vinte quilos de puto mal cheiroso não assusta nem uma galinha...). Mais estranho aínda, o pequeno roedor vem-se aproximando lentamente de mim, como que a pedir um afágo. Sorrio...Atiro-lhe um pedaço de bolacha de aveia (a minha merenda).
Ele pula, pega-a com as suas duas patas dianteiras, mostra-me os seus dentinhos dianteiros. Acredito que me estava a devolver um sorriso.
Assim que dá uma dentada na bolacha, a sua expressão muda abruptamente. Emite um estridente e estranho som, uma espécie de tosse seca com gritos histericos. Olha-me nos olhos, aproxima-se lentamente das minhas pernas e espeta-me uma monstruosa dentada que me arranca metade do gémeo da perna esquerda. E foge...
Esguinchos de sangue,suficientes para extinguir um fogo que consuma cem ectares de floresta, jorram da minha perna. Daí a escutar o som faminto dos primeiros abutres, foram segundos. Também as hienas começaram a dar sinais da sua próximidade.
Petrificado, subo para o cume da abacacheira, onde procuro engenhar um curativo com folhas e ramos. Lá em baixo, cinco hienas riem-se, ávidas de uma queda que me seja fatal.
Grito por socorro, ninguém me responde...
Passam-se duas horas, a lua já vai alta, sem que as feras pareçam dispostas a dar-me tréguas. Sinto-me fraco e a entrar em estado de alucinação. Cada gota de sangue perdida é agora um passo rumo à morte.
O mundo desfoca-se, até que se apaga de vez.
Acordo com o sol a bater-me nas faces. Ao longe, julgo ouvir alguém chamar pelo meu nome. O som desse chamamento vem-se aproximando. Tento responder, mas as forças já não me o permitem.
Alguns minutos depois, a confirmação. São os meus irmãos! Estou salvo!- pensei.
Ajudam-me a descer da árvore, ignorando os meus avisos desesperados de que as hienas podem surgir a qualquer momento.
Levam-me às cavalitas para casa. De novo, o mundo apaga-se.
Quando acordo, não sei bem dizer onde estou. O nevoeiro que se abate sobre os meus olhos vai-se dissipando lentamente. Começo a distinguir um farto bigode e uns negros olhos que me fitam...Arrepio-me. É a mãe....
Quando finalmente me sinto acordado e consciente, ela pergunta-me se já a consigo ver e ouvir bem. Aceno afirmativamente com a cabeça.
Bem ao seu estilo, a P*TA diz-me:
- Meu grandessíssimo CAR**HO, esta é para aprenderes a não ir brincar para a savana e a não sujares a M*RDA da roupa com esse teu sangue amaldiçoado!
Recordo-me apenas do som seco do punho a embater na minha nuca.

O mundo apaga-se de novo...

Joel, 6 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

Mensagem na Garrafa

A situação a que chegou a minha vida exige de mim a procura desesperada de uma solução que me tire da fossa. Estou a atingir limites de saturação física e psiquica. S.O.S, Joel está a esvair-se em desespero.
Depois de equacionar algumas possiveis soluções (pardal-correio, sinais de fumo de espiga de milho), decidi-me pela que mais esperança me trouxe: escrevi uma mensagem que coloquei numa garrafa de azeite. Lancei-a ao Ribeiro das Imundas, esperando que siga pelo seu leito até desaguar no Rio Til. Se chega aí, acredito que alguém me ajude.

Eis a mensagem que envio ao Mundo:

Caros cidadãos do Mundo,

O meu nome é Joel, e sou uma pobre alma que habita na aldeia de Anarquim de Baixo.
Vivo na miséria, tenho uma tirana como mãe, e uma manada de broncos como irmãos.
Estou sub-nutrido, exausto, triste, só e desesperado.
Apelo a quem me lê que me ajude. Estou todo F***DO. Mesmo. Mesmo. Mas mesmo mesmo. As forças que tenho já nem suficientes são para me fazer erguer do canto da casa em que escrevo este texto.
Mandem as tropas cá a casa, bombardeiem Anarquim, envenenem esta cambada de filhos de uma grandessíssima P*TA.
E não me venham com M*RDAS de argumentos de que a escrever assim não vou conseguir que alguém me ajude. Não vou o CARA**O!
Eu que saiba que estás a ler isto e não fazes nada para me ajudar. Ouviste? Hã?
Vem a minha casa, tira-me de lá. Ponto final. Ouviste? FINAL!
OBRIGADO.

Passam agora duas horas e vinte e quatro minutos que enviei o pedido de socorro.
Até ao momento surgiram já três homens interessados em me comprar. A mãe pede porém um valor elevado por mim: duas coroas e um leitão assado.
Não quero ser vendido. Quero ser salvo. Quero correr nu por montanhas verdes, Quero escrever poesia sobre musas que correm à minha volta. Quero respirar ar que não absorva a podridão que me envolve.
QUERO.