sábado

Ismael

Encontrei alguém especial. Não é humano, não fala, não brinca. Mas ouve-me...Eu sei que sim. Encontrei-o quando estava a limpar a banca onde desfiámos o feijão verde para vender no mercado de Anarquim de Cima ( a eterna aldeia rival).
Pequenino, esguiço, cor escura, aparência repulsiva. Só podia receber um nome : Ismael!
Preparei a caixinha de fósforos da forma mais acolhedora que consegui: dividi-a em dois pequenos compartimentos (a fazer lembrar o meu casebre) sendo que um será o quarto e o outro a casinha das necessidades.
Fiz também uma portinha para ele poder saír, se um dia se fartar. Mas eu não quero que ele vá! Decidi então construir a minha mãe em cartolina e colocá-la junto à portinha, para que o Ismael não se atreva a aproximar!
Para a cama, utilizei algodão para o colchão e folha de couve para o cobertor. Se calhar vou ter que pôr outra, porque à noite o tempo arrefece muito.
Quanto ao compartimento das necessidades, cobri-o com serradura, que estou certo que absorverá todo o chichi e cócó que o Ismael fizer.
A felicidade que senti quando tudo ficou pronto durou alguns minutos. O Rafa descobriu a caixa e decidiu brincar aos veterinários com o Ismael: cortou-lhe duas perninhas e empastou-o em manteiga de beterraba ,“para ver se ele gostava”.
Sim Rafa, quem não gosta de ser amputado e coberto com gordura?
O Ismael aínda se mexe, mas a minha esperança já está moribunda.
Em breve Ismael partirá para o reino celestial dos escaravelhos. O Rafa vai pagá-las...

Joel, 30 de Abril de 1970, Anarquim de Baixo

quarta-feira

o banho

Está frio hoje. Emprestei a minha camisola mais quentinha à minha irmã Carmelinda, que ela tem mais frio do que eu. Eu sou homem, não posso ter frio.
Hoje houve banhoca para todos...abençoado São Pedro, como sempre o é.
É regra cá de casa: a água do poço que o Sr. Gilberto nos oferece (normalmente três baldes por semana), é usada apenas para fazer a sopa de coentros (a nossa única refeição diária) e para bebermos um copinho antes de dormir. A mãe bebe um jarro .Ela diz que é por ser mais idosa, precisa mais do que nós. Adiante:
Mas que bem que soube o banho!Sabe sempre melhor quando é inesperado... Estavamos sentados no chão frio do casebre a jogar ao “calha o calhau” (um dia explico como se joga), quando sentimos a luz que incide sobre a pequena janela diminuir de intensidade. O rebuliço instalou-se entre todos nós! Só podia ser uma núvem!
Daí a caírem os primeiros pingos foi um ápice, e num ápice fomos para a rua usufruir da benção que é sentir a água penetrar nos poros da pele! Esfregámos o sabão de cenoura por todo o corpo e cantámos e rimos e chorámos com aquele momento tão abençoado.
O pior é sempre quando a chuva pára...O corpo arrefece e não há toalhas para nos secarmos. Para cúmulo dos azares, levantou-se uma ventania e ficámos todos cobertos por uma fina camada de poeira. Ao entrarmos em casa nesta triste figura, eis que surge mais um habitual ataque de fúria da mãe, contemplando-nos a todos com um belo festival de réguadas nas nádegas...

Joel, 27 de Abril de 1970, Anarquim de Baixo

terça-feira


lá fora o mundo respira...aqui dentro eu suspiro... Posted by Hello

não quero janelas

Quem me dera que a casa não tivesse janelas. Elas só servem para me fazer suspirar com liberdade, sonhar com uma vida a céu aberto, com uma simples ida à escola, com um simples jogo das escondidas...Não gosto de sonhar.
Não quero ser uma daquelas pessoas que dizem “ um dia hei-de...”, mesmo quando sabem perfeitamente que esse dia nunca vai chegar.
Eu sei que nunca hei-de ir à escola...sei que nunca vou poder brincar uma tarde inteira, a não ser com as couves e as cenouras que tenho que regar. E não encontro muita diversão quando conto as pingas de água que ficam em cada folha de couve...nem quando meço quantos dedos mindinhos cabem no comprimento das cenouras.
Por isso tapa as janelas mãe...eu não quero sonhar.

joel, 26 de abril de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

a ceia perfeita

Acordei sobressaltado...
O meu irmão Rafa não pára de tossir...rebolo por cima dos três com quem partilho o colchão de palha e calço as chinelas, rotas na dianteira.Vou à cozinha. Tenho fome...
Na bancada de pedra encontro um pedaço de carcaça, duro como uma viga de cimento.
Molho-a numa tigeja com água, para amolecer. Para ajudar a empurrar, espremo o sumo de uma cebola para um copo. Humm, que bem que sabe este esplendoroso repasto...
Ahh, como somos afortunados!

joel, 26 de abril de 1970, Anarquim de Baixo

colheita!

Hoje foi o grande dia! Adoro o dia da colheita...Todo o dia nos campos verdes a cantar e a recolher as bolotas para os cestos de vime! Todo o dia sem respirar o ar contaminado de Anarquim! Todo o dia sem levar uma chapada ou cumprir mais umas horas de escravatura caseira!
Ao final do dia, já com o sol escondido na montanha, regressamos em alegre passeata, entoando as mais lindas canções cá do burgo! A minha favorita é a “Linda Fazendeira”.

“Linda Fazendeira, que colhes a bolota
De sol a sol trabalhando sem parar!
Linda Fazendeira, a ruga nem se nota!
E o teu bigode faz-me suspirar!”

Adoro esta canção...
Ao chegarmos à aldeia, cada um se refugia no conforto do lar, despedindo-se com calorosas manifestaçoes de afecto.
Eu chego a casa, enfardo mais uma chapada da mãe e vou descascar as últimas 12 batatas que restam na saca.

joel, 26 de abril de 1970, Anarquim de Baixo

eu, os meus pais e os meus dois irmãos mais novos. A foto data de 1964. Tinha 6 anos... Posted by Hello

que bela noticia...

Quero lá saber.
A minha mãe está de novo grávida. Acho que faz muito bem... O pai deve estar a adorar a ideia!Aposto que está a dar uma grande festa no túmulo...Aliás, quem não gostaria de receber esta noticia?!
O facto de sermos 8 irmãos e vivermos numa casa a caír de podre com dois pequenos compartimentos não nos tira a felicidade estampada no rosto...
O facto de não termos um tostão e de o ano estar mais seco do que nunca e de a colheita de batatas ser escassa nos nos tira das sete quintas...
O facto de a minha irmã mais novinha estar com tubercolose não nos impedirá de celebrar o milagre que é a vida...
O facto de o pai da criança ser o Zé das Vacas, o lenhador mais ransoso de toda a região não nos tira a esperança de o rebento saír mais perfeito do que qualquer um de nós...
O facto de o bébé ter sido feito (pelas minhas contas) 4 meses antes de o pai morrer não nos deixa magoados com a mãe...
O facto de ela fazer o anúncio da gravidez 13 dias, 14 horas e 23 segundos depois da morte do pai não nos deixa estupefactos...
Puta... A minha mãe é uma puta.

joel, 25 de abril de 1970, anarquim de baixo

ai pai...

O pai morreu faz hoje oito dias...mas continuamos a ser alimentados a pão e coentros. Porquê? Não sei...perguntem à mãe. Quando o fiz recebi em troca uma amável chapada na face esquerda. Não esperem que o faça outra vez. De ora avante impera a lei do come e cála.
Malditos coentros...Juro que se descubro quem descobriu os seus poderes culinários, aniquilarei qualquer hipótese de esse génio voltar a andar.
Ai pai...fazes uma certa falta aqui em casa...já ninguém chega a roupa ao pelo à mãe...
Se eu pudesse...se eu pudesse matava-a...Mas não posso...
Hoje não.
Quando penso em ti, meu pobre pai...recordo-me daquela maravilhosa tarde em que me ensinaste a amanhar as tripas de um rato.
É engraçado...Quando alguém parte surgem-nos à memória pequenos momentos que ansiamos poder reviver uma vez mais, mais intensamente, mais peculiarmente, mais...apenas mais.
Trocava o mundo para te poder ter ao meu lado pai, enquanto me indicas o melhor sitio por onde começar a estrinchar o pobre rato que aínda espasma.
Acho que quando a mãe morrer vou sorrir...vou agradecer a Deus o eterno castigo que estou certo que lhe será aplicado.
E não a vou recordar...Eu sei que não...

joel, 23 de abril de 1970, Anarquim de Baixo