terça-feira

Eleições em Anarquim!

O dia de eleições é sempre especial! A populaça de Anarquim acorda com o primeiro raio de sol e o rebuliço toma conta de todos os lares.

As mulheres vestem-se a preceito, normalmente com uma camisa amarela e uns calções de banho verdes claros, as cores oficiais do burgo. Penteiam minuciosamente cada pelo do farto bigode – que deixam crescer duas semanas antes, propositadamente para este dia – e distribuem chapadas pela cara dos filhos, para que apresentem outro tom de pele que não o cinzento indicador de escarlates, pestes e epidemias afins.

Os homens erguem-se dos seus leitos, calçam as enormes botifarras e dirigem-se de imediato para a pocilga (normalmente situada entre a sala de estar e o canto da casa destinado às necessidades), onde pontapeiam um enorme suíno até este se apresentar no limiar da partida para o outro mundo. Chega então a altura de pendurar os quase cadáveres dos pobres animais na portada da janela virada para a rua principal. De seguida esfregam-se de alto a baixo com hortelã, deglutem uma garrafa de jeropiga em coisa de dois minutos e estão prontos a sair.

Pelas sete da madrugada, a praça central de Anarquim encontra-se já apinhada. Trocam-se cumprimentos cínicos e olhares que espelham uma rivalidade dilacerante. A impaciência começa a tomar conta das gentes, até que pelas oito em ponto o Senhor Vergas abre as portas da Casa do Povo e declara abertas as urnas.

Ao contrário do que o ambiente deixa transparecer, o exercício de voto é feito de uma forma extremamente ordeira e civilizada. De resto, em meia hora todos cumprem o seu direito.

A impaciência assume-se de novo como rainha na praça, enquanto que é feita a contagem dos votos no interior do edifício. A contagem é porém rápida (a aldeia pouco mais tem do que 300 eleitores).

Ás nove horas matutinas, o Senhor Vergas anuncia os resultados, de todo esperados:

Registam-se 323 votos, existindo curiosamente um empate entre 323 pessoas. A lei manda então que se instale uma Anarquia.

Chega então a hora de reunir os cada vez mais quase cadáveres dos porcos moribundos e iniciar um arraial que se prolongará até que o excesso de pinga dê lugar a uma sessão de pancadaria que normalmente dura três dias e que culmina sistematicamente com a morte do responsável pela organização das eleições do presente ano.

Adeus senhor Vergas.

Joel, 25 deJulho de 1970, Anarquim de Baixo

Adeus niños

“ Toda e qualquer satisfação atingida através de utensílios considerados supérfluos à luz da razão será punida com a proclamação em praça pública da total inoperabilidade sexual do indivíduo em questão”

Goçalvez Marquis in “7 noites em Bogotá”

Pobre Fátinha…logo ela que queria tanto ter quatro putos.

Joel, 23 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

sexta-feira

Divina

Buenos Dias – digo-te com a voz ainda rouca de um despertar prolongado.

A resposta silenciosa que me retribuis diz-me mais do que mil e cem palavras. Mas não o sabes. É o ténue brilho que tens no olhar, ténue mas intenso, que fala por ti. O modo como não pestanejas quando me fitas, como me absorves as entranhas, esvaindo o meu ser pela retina. Nesses momentos, podem desmoronar-se as paredes que delimitam este quarto. Caiam as fundações deste velho barraco. Pouco me importa, nada me importa. Apenas tu.
Tento-me iludir com uma convicção de que te sou especial. Tento abstrair-me do facto óbvio de que foi o cio que te conduziu a estes lençóis...
Deixa-me viver um pouco mais neste mundo de ilusão. Fecho agora os olhos. Sei que quando os reabrir não mais aqui estarás. Quando saíres lambe-me a cara.

Cadela sem nome, para mim serás a Divina.


Joel, 21 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

Ponderação de um Crime Anunciado

Sete bolhas de ar puro
Soletram sussurros de senso comum
Evocam vindimas colhidas à chuva
Procurando no vento resposta divina.

Fredrich Von Hippie, in “Como cozinhar um ovo numa bases de dados”

Não sei quanto a vocês, mas esta quadra diz-me muito…É fabuloso constatar que cada palavra, cada sílaba, cada letra, são impressionantes metáforas que nos remontam para cenários tão contemporâneos…

Urge parar para pensar. Que couve é esta que se vê roída pelo pequeno coelho alvo? Em que pensa esta galinha que me fita, estupefacta? Que mundo é este em que o oprimido se vê humilhado no charco e na lama?

O sol que agora me aquece, amanhã queimar-me-á.

Pensem nisso…

Joel, 19 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

sexta-feira

7 dias de traumatismo

O despertar desfocado revelador de uma prolongada sonolência.
A extrema dificuldade em mover a carne e o osso, indicadora de uma imobilidade atípica.
O pânico quando escutada a voz dos que me rodeiam, sem saber exactamente quem são.
A introspecção à procura de respostas para tudo isto, encontrando antes um colossal vazio no lugar das memórias.

Tudo isto é o culminar de uma chapada de força mal calculada.
Foste longe de mais PUTA. A vingança servir-se-á bem gelada.

Mas estou de volta…

Joel, 17 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

quinta-feira

Não há vinte sem mil...

A meio da refeição (floco de batata com rodelas de azeitona), a voz grossa da mãe rompe o pesado siêncio com um surpreendente discurso, que passo a citar :

“Meus ricos filhos. Sabeis vós que a vossa mãe está a ficar veilha e cansada. Sabeis também que o fedelho que trago dentro de mim há quatro meses me dá muntas biqueiradas. Já na aguento más...Teinho que ficar en casa en repôso. Tendes que ir arranjar um trabalho mês filhos...”

Ouvido isto, hesitei antes de equacionar pensar se seria prudente sequer reflectir sobre a possibilidade de avaliar a pertinência de colocar uma questão à madre.
Enchi-me de coragem e perguntei:

“Mas minha mãe, não é isso que fazemos há já vários anos? Se bem me lembro, desde que pariu a Carmélia que a senhora nos obrigou a trabalhar. Aos cinco anos eu próprio já andava a acartar ma...(CLAP!!!!!)

Já se sabe...quando faltam os argumentos, a mão materna resolve a situação.

Joel, 10 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

Pedaço de Papel

Estava na eira a apanhar pinhas para a salada quando achei um velho recorte de um caderno debaixo de uma pedra. Não sei bem o que diz, mas parece-me ser giro...quatro linhas agrupadas em quatro blocos de texto, escrito numa lingua esquisita...

The lands where no one stands

Flying with a broken wing
To the lands where no one stands
Set your place in the highest mountain,
Where the fog ends and the moon is yours

Climb these hallow trees
Light your fire, enjoy your stay
Share your spirit with the rocks
Make no sounds, drop no tears.

Fall asleep and lock your thoughts
In your little box made of sun
Wake up, whisper to the forest
Sing a song you won’t forget.

Be proud of what you became
Never wish to return again
Cause in the lands where no one stands
Silence is a bullet, and you are the gun.

Frederic Marquez

joel, 7 de julho de 1970, Anarquim de Baixo

Alucinaço

Se soubesse o que sentes, sabia sentir a sensação de ser teu. Como a névoa aínda paira sobre os meus olhos, bebo outro bagaço.

E vão vinte e sete. Efeitos? Nenhum...

Permanece à superficie o sonho de te ter, lutando para não naufragar.

O tasco está polvilhado de borboletas que me sussurram o teu nome...
As moscas fazem vôos sincronizados, desenhando corações antes de se despenharem contra a luz anti mosquitos ( invenção de um homem cá da terra, Artur Engenhocas).
O som dos copos que se pousam sobre o balcão sincronizam-se com a batida do meu coração...
O velho rádio cospe repetidamente a canção de que me lembras...

Quim Fisgas, deixa-me vê-la...

Joel, 7 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

quarta-feira

Na savana...

Sentado na sombra de uma abacacheira, procuro encontrar na natura um rumo para a minha vida.
À minha frente, pasta um pequeno coelho. É estranho, mas aparenta não ter qualquer receio da minha pessoa (convenhamos também que vinte quilos de puto mal cheiroso não assusta nem uma galinha...). Mais estranho aínda, o pequeno roedor vem-se aproximando lentamente de mim, como que a pedir um afágo. Sorrio...Atiro-lhe um pedaço de bolacha de aveia (a minha merenda).
Ele pula, pega-a com as suas duas patas dianteiras, mostra-me os seus dentinhos dianteiros. Acredito que me estava a devolver um sorriso.
Assim que dá uma dentada na bolacha, a sua expressão muda abruptamente. Emite um estridente e estranho som, uma espécie de tosse seca com gritos histericos. Olha-me nos olhos, aproxima-se lentamente das minhas pernas e espeta-me uma monstruosa dentada que me arranca metade do gémeo da perna esquerda. E foge...
Esguinchos de sangue,suficientes para extinguir um fogo que consuma cem ectares de floresta, jorram da minha perna. Daí a escutar o som faminto dos primeiros abutres, foram segundos. Também as hienas começaram a dar sinais da sua próximidade.
Petrificado, subo para o cume da abacacheira, onde procuro engenhar um curativo com folhas e ramos. Lá em baixo, cinco hienas riem-se, ávidas de uma queda que me seja fatal.
Grito por socorro, ninguém me responde...
Passam-se duas horas, a lua já vai alta, sem que as feras pareçam dispostas a dar-me tréguas. Sinto-me fraco e a entrar em estado de alucinação. Cada gota de sangue perdida é agora um passo rumo à morte.
O mundo desfoca-se, até que se apaga de vez.
Acordo com o sol a bater-me nas faces. Ao longe, julgo ouvir alguém chamar pelo meu nome. O som desse chamamento vem-se aproximando. Tento responder, mas as forças já não me o permitem.
Alguns minutos depois, a confirmação. São os meus irmãos! Estou salvo!- pensei.
Ajudam-me a descer da árvore, ignorando os meus avisos desesperados de que as hienas podem surgir a qualquer momento.
Levam-me às cavalitas para casa. De novo, o mundo apaga-se.
Quando acordo, não sei bem dizer onde estou. O nevoeiro que se abate sobre os meus olhos vai-se dissipando lentamente. Começo a distinguir um farto bigode e uns negros olhos que me fitam...Arrepio-me. É a mãe....
Quando finalmente me sinto acordado e consciente, ela pergunta-me se já a consigo ver e ouvir bem. Aceno afirmativamente com a cabeça.
Bem ao seu estilo, a P*TA diz-me:
- Meu grandessíssimo CAR**HO, esta é para aprenderes a não ir brincar para a savana e a não sujares a M*RDA da roupa com esse teu sangue amaldiçoado!
Recordo-me apenas do som seco do punho a embater na minha nuca.

O mundo apaga-se de novo...

Joel, 6 de Julho de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

Mensagem na Garrafa

A situação a que chegou a minha vida exige de mim a procura desesperada de uma solução que me tire da fossa. Estou a atingir limites de saturação física e psiquica. S.O.S, Joel está a esvair-se em desespero.
Depois de equacionar algumas possiveis soluções (pardal-correio, sinais de fumo de espiga de milho), decidi-me pela que mais esperança me trouxe: escrevi uma mensagem que coloquei numa garrafa de azeite. Lancei-a ao Ribeiro das Imundas, esperando que siga pelo seu leito até desaguar no Rio Til. Se chega aí, acredito que alguém me ajude.

Eis a mensagem que envio ao Mundo:

Caros cidadãos do Mundo,

O meu nome é Joel, e sou uma pobre alma que habita na aldeia de Anarquim de Baixo.
Vivo na miséria, tenho uma tirana como mãe, e uma manada de broncos como irmãos.
Estou sub-nutrido, exausto, triste, só e desesperado.
Apelo a quem me lê que me ajude. Estou todo F***DO. Mesmo. Mesmo. Mas mesmo mesmo. As forças que tenho já nem suficientes são para me fazer erguer do canto da casa em que escrevo este texto.
Mandem as tropas cá a casa, bombardeiem Anarquim, envenenem esta cambada de filhos de uma grandessíssima P*TA.
E não me venham com M*RDAS de argumentos de que a escrever assim não vou conseguir que alguém me ajude. Não vou o CARA**O!
Eu que saiba que estás a ler isto e não fazes nada para me ajudar. Ouviste? Hã?
Vem a minha casa, tira-me de lá. Ponto final. Ouviste? FINAL!
OBRIGADO.

Passam agora duas horas e vinte e quatro minutos que enviei o pedido de socorro.
Até ao momento surgiram já três homens interessados em me comprar. A mãe pede porém um valor elevado por mim: duas coroas e um leitão assado.
Não quero ser vendido. Quero ser salvo. Quero correr nu por montanhas verdes, Quero escrever poesia sobre musas que correm à minha volta. Quero respirar ar que não absorva a podridão que me envolve.
QUERO.

Gafas Nhoto

O circo Degredus chegou finalmente a Anarquim!
Palhaços, trapezistas, araras pernetas, macacos azuis, leopoldinas, ursos polares, e finalmente, a estrela da companhia: o grande Gafanhoto Erudito.
Poucos o sabem, mas fui em quem descobriu o Gafas ( era assim que carinhosamente o chamava quando lhe dava banho com água oxigenada). Tudo começou numa fria tarde de Outubro.
Recordo-me como se fosse antes de ontém...Caminhava para a diocese, onde ia diariamente buscar a PPAFSUCSPCUPDUMDP (Pensão Para As Familias Sem Um Chavo Sequer Para Comprar Uma Puta De Uma Migalha De Pão), quando encontrei o pequeno gafanhoto, lutando desesperadamente para se escapulir de uma enorme poça de lama. Assim que o vi, senti algo que não pensei ser possível de sentir quando se olha para um animal deste calibre : Fome.
Passaram então vinte e três segundos entre a chegada desta sensação e a saciação da mesma. Foi o tempo de pegar no Gafas por uma pata, passá-lo por água limpa (não aprecio lama em insectos, mas gosto de a barrar em pão de forma duro. Quer dizer, duro porque nunca comi mole...Se já tivesse comido pão do dia se calhar gostava mais. Mas até gosto dele duro. É gostoso. Quer dizer, gostoso gostoso não é, mas com lama marcha que nem ginjas.), e colocá-lo na boca.
Segui-se a fase de transformação do Nhoto (nome pelo qual o comecei a chamar mais tarde sempre que se portava mal) em bolo alimentar. Este processo é extremamente agradável para quem petisca estes espécimes, uma vez que a própria textura estaladiça do animal e os inúmeros sucos de paladar apurado que dele se desprendem, transmitem uma incomparável sensação de bem estar.
Uma vez culminada esta transformação, o mais incrivel dos fenómenos aconteceu: senti uma espécie de implosão dentro da minha boca ( implosão essa que acabou por vitimar dois dos meus oito dentes). Para espanto meu, ao abrir a boca deparei-me com o gafanhoto completamente intacto, a tocar percussão com os seis dentes que me restavam.
Na altura, inocente como era, corri para casa e fiz uma demonstração deste deslumbrante espectáculo para a minha familia.

Menosprezei porém o facto de que isso implicaria a queda de mais dois dentes. Ficaram então apenas quatro exemplares de molares na minha boca. Mas o meu infortunio não podia ficar-se por aqui. É óbvio que faltava a intervenção da mãe em toda esta história: um murro nas fussas, por fazer sofrer o bicho divino. Resultado : Fiquei sem dentes!

Ora, não tendo dentes, o Gafas deixou de ter percussionismo na minha boca. Decidi então doá-lo ao circo Degredus, onde foi acolhido como uma verdadeira vedeta.
E é vê-lo hoje em dia a brilhar nas suas actuações, juntamente com um misterioso duende albino, ao qual crescem dentes novos todos os dias.

Joel, 27 de Junho de 1970, Anarquim de Baixo.

domingo

o Fumo

Uma densa núvem de fumo paira sobre Anarquim.
Há três dias que um monstruoso fogo consome a descomunal plantação de rapigos da quinta dos Polinésios. Não é porém um fumo desagradável. De todo...
Quando inalado, despoleta nos habitantes reacções que roçam o absurdo. Eis uma compilação das situações que testemunhei enquanto caminhava para a padaria do Mestre Alfeu:
-A dona Ricardeta corria de um lado para o outro, completamente desnudada, gritando : " Sim, D.Afonso! Fui eu quem colou a peúga ao mastro da bandeira de Jacarta!"
- João Albino contava o número de folhas da oliveira das aparições, defendendo que ao obter o número total de folhas e dividir o mesmo pelo número de azeitonas, se obteria a fórmula quimica para cura da espandilose.
- A banda filarmónica de Anarquim saiu à rua vestido de verde florescente, entoando "A ode à alface". O povo batia palmas e gritava nas entrelinhas:"ALFACE! TOMATE! QUEM NÃO GOSTA QUE SE MATE!"
O cenário surreal conheceu o momento de apóteose aquando da chegada de Arlindo Visco. Sentado no seu tractor, gritava histérico, intitulando-se o "O castigador das almas podres". Um por um, Arlindo resolveu esmagar debaixo do seu veículo toda a populaça que se encontrava na praça.
Um mar de sangue inundou a baixa. Mas logo se estipulou o seu reaproveitamento: os sobreviventes do massacre trouxeram arroz e cebolas para a rua e confeccionou-se a cabidela mais gostosa que alguma vez saboreei.
Pela noite dentro, orgias macabras sucederam-se a um ritmo alucinante em qualquer recanto da aldeia.
Que prossiga o fogo!
Joel, 19 de Junho de 2005, Anarquim de Baixo

quinta-feira

Mais uma noite que passo em claro
Uma mais em que fico no escuro.
O minuto anterior passou a correr...
O seguinte demorará uma eternidade.

A lucidez teima em não aparecer
Quedando-se em parte incerta com o sono.
Neste labirinto em que me enclausurei
Receio não mais encontrar saída.

Mas se a encontro, o receio cresce...
O que vou encontrar lá fora?
Uma mãe, como sempre enfurecida?
Ou o grande amor da minha vida?

Sei que és de uma outra classe...
E que a possibilidade é vã
Mas não me peças que desista de ti,
Por o teu corpo estar coberto de lã...

Joel, 16 de Junho de 1970, Anarquim de Baixo

terça-feira

Madrugada

Uma claridade triste irrompe pela portada da janela. A noite vai longa e o corpo arrefecido. Apenas a gargante se vai mantendo quente, por força da aguardente de figo que malho desde as duas da manhã. Procuro no efeito do alcóol uma solução para o meu coração..Em vão...
Surgem à desfilada imagens tuas...graciosa, energética, exuberante, linda...simplesmente linda.
O ponteiro do relógio continua a sua cruel caminhada para a hora em que retorno à lavoura.
As paredes da cozinha condensam-se. O ar torna-se rarefeito. Tenho que saír daqui...tenho que a ir ver...

(Quim Fisgas, essa ovelha será minha...)

sábado

desabafo...

Vento. Afasta a poeira de ódio que me envolve.
Chuva. Extingue a chama da amargura que me consome por dentro.
Terra. Fertiliza a semente de onde me renasça a esperança.

Atento por um grito divino que me inquiete.
Suspiro pelo consolo de uma mão de tacto suave...
Eterno, este desejo de harmonia com a natura.
Cega, a vontade de triunfar sobre as trevas.

Um dia vou ser grande. E hão-de vir todos aqui, ao pobre menino.

Fraco. Triste. Mas nunca conformado.


Joel, 4 de junho de 1970, Anarquim de Baixo

terça-feira

O jogo da bola

Estava em casa, sentado no chão frio da cozinha a rabiscar no meu caderno quando oiço alguém bater à porta.
-Quem é?- perguntei de imediato, deixando transparecer alguma excitação por haver alguém que se digna de vir cá a casa.
-Sô o Paulo Covas- responderam do outro lado com uma voz entediada.
O Paulo Covas....eu logo vi que era bom de mais...A haver alguém a tocar à nossa porta numa tarde soalheira como esta, tinha que ser o puto mais arruaceiro e atrasado de Anarquim.
Ainda me ocorreu dizer-lhe que não estava ninguém em casa (acreditem, ele caía nessa!), mas lá decidi abrir-lhe a porta.
-Juel, arranja aí uma equipá pa vir jugar ao bola contra á gente. Daqui a mêa ora apareçam lá no descampado do Cajó. Se na apareces levas nos cornos. Tu e os tês irmões.
E pronto. Perante isto que podia eu dizer? Acenei temerosamente a cabeça, fechei delicadamente a porta e comecei a fazer contas à vida.
Cá de casa os únicos que têm forças para fazer mover a bola com um chuto sou eu e o Rafa ( e mesmo assim já é grande o esforço...).
O único senão é que o Rafa tinha ido à feira de Rebelhão com a mãe...
-Pronto, estou f***do! – suspirei enquanto me equipava...
Quando o relógio batia as dezasseis horas e trinta e dois minutos, apareci no descampado. As balizas (feitas com ramos de Bananeira), estavam já montadas e colocadas no devido lugar. A bola (feita de jornal e envolta em folhas de couve) encontrava-se já no centro do terreno de jogo. Quanto à equipa adversária, não havia sinais da sua presença, nem mesmo da sua eminente chegada...
Para enganar o tempo, decidi ir dar uns toques no esférico. Comecei a correr na sua direcção, e qual não é o meu espanto quando sinto o piso abater sobre os meus pés, levando-me a caír num profundo buraco.
“Cabrões...prepararam-me uma armadilha!” - pensei enquanto esperava o momento em que o corpo embatesse no fundo da cova. E quando assim aconteceu, como se tivesse pressionado um botão, mil e uma gargalhadas surgiram, provenientes de toda a periferia do descampado...
Uma a uma, foram surgindo cabeças lá no topo, ávidas por me ver estatelado e ferido, no chão da toca.
Aos poucos lá se foram retirando, deixando-me ali, indefezo e diminuido fisicamente. A muito esforço trepei para a superficie. Era já noite quando a alcancei.
Chegado a casa, a mãe nem precisou de dizer nada...já sabia o que me esperava.
Por cima de umas quantas escoriações, cabe sempre mais um par de chapadas.

Joel, 31 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

Malditas leis!

Acordei, lavei a cara no charco sujo que a chuva matutina proporcionou. Respirei fundo e pensei para os meus botões: “ Boa sorte puto!”.
Caminhei em passos largos para a Junta. Debaixo do braço, levava “ A chacina”, a obra-prima que criei.
Chegado ao destino, requeri uma “audiência” (sim, porque para a recepcionista o facto de eu dizer que queria falar com o Sr. Esdrubal Gonçalves soaria a provocação) com o presidente da Junta.
Foi-me pedido que aguardasse “alguns minutos”, porque o Sr.Presidente estava numa importante reunião. A verdade é que esses minutos foram horas...Duas horas e vinte e três minutos, para ser mais preciso. Creio que contei mais de cem vezes o número de acnes que a recepcionista tinha na cara.
Mas enfim, lá acabei por ser recebido, sem que me apercebesse dos restantes elementos presentes na "reunião".
Entrei, sentei-me na incrivelmente desconfortável e pêndula cadeira de madeira.Expus o assunto que ali me trouxe:
“ Senhor presidente, gostaria de saber qual a receptividade que Anarquim disponibilizaria para encenar uma peça de teatro que escrevi...”
“Bom, jovem...” - respondeu hesitante – “Anarquim nunca fecha os olhos à cultura...Aliás, amanhã mesmo inauguramos a SACSC (Semana dos Anarquenses Com A Segunda Classe). Mas diz-me lá pequeno...de que peça se trata?”
“Aqui tem”- respondi prontamente, sem conseguir evitar que um largo sorriso orgulhoso me escapasse da boca.
O senhor presidente pegou nas folhas, sentou-se e iniciou a leitura em silêncio. A partir desse momento, o seu olhar tornou-se carregado, surpreso, alternando a folha de papel com a minha pessoa. Apenas uma tosse forçada interrompia o pesado silêncio que de imediato se fez sentir.
Concluida a leitura, o Sr. Esdrubal pediu licença e saíu, justificando que tinha que ir à casa de banho...
Do silêncio, escutei um longinquo som que se assemelhava ao de um vómito.
“Humm...” – pensei para mim – “ Algo me diz que não gostou!”
Voltou à sala poucos minuos depois, trazendo consigo um sorriso que me deixou mais tranquilo.
“Desculpa lá isto...É que tive a comer torresmos em jejum, caíram-me mal. Sabes míudo...” – disse com a maior das serenidades – “A peça está boa, tem conteúdo, tem emoção, tem drama, tem acção...Mas creio que não é de todo viável a sua encenação em Anarquim...”
Desapontado, inquiri o presidente sobre o motivo pelo qual tomara esse veredicto.
Respondeu-me:
“O uso de palavras obscenas em Anarquim apenas é permitido por lei a partir da meia noite...e a essa hora a sala de espectáculos de Anarquim (um casebre nojento a caír de podre) está alugado pela AATD (Associação de Aperfeiçoamento das Técnicas de Dominó)...Lamento.”

Contra estes argumentos, não havia contra-ataque possível... “A chacina” sem calão seria como jogar ao bate pé só com beijos na cara...

Joel, 24 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

sábado


O cartaz da peça Posted by Hello

quinta-feira

A peça

Estava a tentar adormecer quando idealizei aquilo que poderá um dia vir a ser a grande peça de teatro da actualidade. Eis os actos:


A CHACINA

ACTO 1

A acção desenrola-se numa divisão que alberga cozinha e sala de refeições. As paredes de pedra negra transmitem uma luminosidade obscura ao ambiente. Junto a uma bancada de pedra, uma mulher descasca feijão verde para dentro de um grande alguidar.
No centro, junto a uma pequena mesa de madeira podre, encontra-se o seu filho sentado numa cadeira de vime a rabiscar no seu pequeno caderno.
Sem nunca estabelecer um contacto visual, a mãe inicia a conversa:

MÃE: (com uma voz grosseira e autoritária)

“ Oh puto do c***lho, vai ali atrás à horta apanhar umas folhas de couve para pôr na sopa”

O filho fita-a de alto abaixo com desdem e responde-lhe à letra.

JOEL: (revoltado) “Fo**-se! Vai tu, oh velha do c***lho!

A mãe aparenta estupefacção com a bravura da resposta do rebento. Quando se prepara para se virar e lhe espetar um murro nas fussas, Joel, em antecipação, espeta-lhe com um garfo na testa.
A mãe cai redonda no chão. Joel verifica-lhe a pulsação. Ergue as mãos para o céu e exclama:

JOEL: Hihihi, finalmente matei a P*TA!! Aleluia!!!

Desconfiado, certifica-se que ninguém se encontra em casa. Arrasta o corpo para as traseiras da habitação, onde cava um imenso buraco. Antes de lançar o corpo inerte para o seu interior, dirige-se à arrecadação, de onde regressa com um serrote. Olha de novo em redor. Urina para dentro do buraco. Lança o corpo para o seu interior. Tapa-o e entra em casa, levando algo na mão.

FIM DO ACTO 1

ACTO 2

A acção desenrola-se de novo no compartimento que alberga cozinha e sala de refeições. À mesa, cinco irmãos ceiam. O silêncio é apenas interrompido pelo som dos talheres e do mastigar de alimentos. Até que Rafa decide falar...

RAFA: (curioso) “ Oh Joel, mas explica lá melhor, que aínda não entendi...Onde está a mãe?”

Joel aparenta impaciência...Coça a cabeça, respira fundo e dispara:
“ Olha Rafa, a mãe ESTÁ ENTERRADA LÁ ATRÁS. SE FORES LÁ VER, NOTARÁS QUE LHE FALTA UM BRAÇO. JÁ AGORA IRMÃOS, DIGAM-ME LÁ... NÃO ESTÁ DELICIOSO ESTE ASSADO DE COTOVELO?! A MÃE É OU NÃO É UM RICO PITÉU???”

Os mais novos reagem gritando, chorando, babando-se. Rafa levanta-se e olha Joel nos olhos. Assim que tenta esboçar um movimento na sua direcção,Joel corta-lhe a garganta com a faca do pão. O pânico instala-se. Os choros e os gritos aumentam. Joel ri-se desalmadamente. E um a um, corta a goela a todos os irmãos.

Coberto de sangue, Joel toma um copo de vinho tinto e adormece em cima da mesa.

FIM


Agora digam-me se não foi a melhor peça que leram nos últimos tempos.!

Joel, 19 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

terça-feira

Para mim?

Mais uma procissão de Nossa Senhora dos Aleijados, a santa padroeira de Anarquim.
De tarde, desfilam pelas ruas os desmembrados, os aleijados, os atrofiados, os doidos, as reumáticas, os bêbados. Quem não preenche estes requisitos enfileira-se junto ao percurso, bate palmas e lança pétalas de girassol sobre o cortejo. Este ano eramos doze a assistir, contando comigo.
À noite, um conjunto anima as hostes (este ano a banda filarmónica de Beijocas foi a escolhida), enquanto que o povo participa numa mega churrascada de pernas de rã.
O vinho jorra a grande ritmo, as pipas secam num ápice, as gargantas entoam canções de amor...
Já com os meus copinhos acentes no estômago, contemplo a mais bela das meninas de Anarquim, a Almerinda.
As pernas fraquejam quando a vejo apontar para mim...Não quero acreditar que me está a chamar.
Hesito, e com um pequeno gesto procuro confirmar se é mesmo a mim que ela chama. Ela acena com a cabeça, parecendo responder afirmativamente.
Nervosamente, começo a percorrer os vinte e dois metros que me separam dela.
Ela sorri...
Eu respondo com um sorriso que me divide a face em dois. Ela abre os seus braços, pronta para me receber.
No momento em que me preparo para fazer o mesmo gesto, sou literalmente abalroado por um Perdigueiro, que lhe salta para o colo. Ela abraça-o e sorri...Olha em redor. Beija-o, rejubila...E num segundo, desaparece por entre a múltidão.

És mesmo estúpido Joel!

Joel, 17 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo.

segunda-feira

Até sempre Madalena...

A mãe vendeu a minha irmã mais nova.
Madalena, 4 anos, olhos negros como carvão. Linda de morrer.Catorze centavos, o que rendeu...
Comprou-a um casal das Requeijoas, pequeno arquipélago situado no Mar das Courgetes. Parecem ser pessoas de bem, embora o facto de serem das ilhas me faça temer pelo pior: trinchar a pequena e usá-la como isco para a pesca do Açafrão. Contam-se histórias de casos semelhantes aqui no burgo.Mito rural, espero...
Com a pequena fortuna, a mãe não perdeu tempo, abastecendo a pequena dispensa com os (seus) bens de primeira necessidade: cinco garrafões de tinto (da adega do Sr. Alfeu, a melhor pinga da região!), três chouriças de sangue de ovelha, dois quilos de sementes de ginja ( para a irmandade ir plantar, claro), duas dúzias de ovos de coderniz e a joia da coroa: um pequeno cabrito,que de imediato apelidamos de Ernesto.
Eram duas e meia da tarde quando brinquei alegremente com o Ernesto no quintal.
Às oito e meia, do Ernesto já só restavam os ossos que ninguém quis roer...
Obrigado Madalena...a ti devemos a primeira refeição em meses que não leva coentros...

Joel, 16 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

quinta-feira

O misterioso assobio

Quando menos esperamos, algo de bom pode acontecer às nossas vidas.Mas mais cedo ou mais tarde, a desilusão chega sempre. Sempre. Aprendi-o hoje...
Estive todo o dia no pomar do Sr.Tobias, um velho produtor de Cerejas Azuladas, que todos os anos solicita a minha ajuda para colher toda a fruta para caixotes. Em troca, quando o sol se despede e a lua nos cumprimenta, o velho dá-me 4 sandes de queijo, uma perna de presunto e duas garrafas de Geropiga. Seria um salário de luxo, nao fosse o facto de a mãe trinchar todo o presunto sozinha e mamar as duas garrafas em menos de 10 minutos. Assim, só posso contar mesmo com as sandochas, que divido com os meus irmãos.
Mas como estava a dizer: algo de maravilhoso me aconteceu hoje. A escuridão já engolira Anarquim, e eu regressava a casa exausto. Vinha a assobiar a música da "linda fazendeira", quando da escuridão, se junta a mim um assobio lindo, perfeito, cristalino, divinal!! O som parecia vir de longe, mas foi-se aproximando aos pouquinhos. Daí a uns segundos, eram poucos os metros que me separavam da misteriosa pessoa que assobiava comigo tão linda canção.
É estranho transpôr para palavras o que senti...Não foi medo, não foi curiosidade, não sei o que foi. Só posso dizer que o meu coração palpitava contra as costelas, parecendo querer fugir do corpo para sempre. E mais viemente palpitou quando senti uma mão tocar na minha...
Quando a tentei agarrar, o assobio parou e escutei o som de um corpo fugir por entre a vegetação. O silêncio voltou a abraçar a noite escura.
Já chegado a Anarquim, deparo com o meu irmão Rafa sentado à porta de casa, assobiando "a linda fazendeira", enquanto que a Carmelinda se ria que nem uma desalmada...
Que pena...menos dois a comer pão com queijo...

Joel, 12 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

Padre Tomás

Nem me lembro da última ve que tinha chorado. Mas hoje não o consegui evitar.
O Padre Tomás deixou-nos. A pessoa mais bondosa, mais querida, mais humana que alguma vez conheci deixou-nos.
Entre nós os dois, havia uma grande cumplicidade...Era a ele que recorria assim que um problema se cruzava com a minha triste existência.
Era ele quem me afagava contra o seu peito e me dizia carinhosamente ao ouvido: “não te preocupes Joel, tudo vai ficar bem”.
Foi com ele que andei de carro pela primeira (e única) vez, aquando de uma visita que fez a uns amigos do Olival das Bananas. Foram dois minutos de viagem, mas que na minha memória durarão anos a fio...até eu morrer.
Com o Padre Tomás aprendi a escutar a voz sábia dos anciãos, a cultivar amendoins, a cantar para Jesus, a amar a natureza, a amar a vida.
Recordo-me da frase que tantas vezes me dizia : “ Quando pensares que a vida não te sorri, que o mundo não compreende a dor que dilacera o teu peito, bebe um bagaço. Vais ver que isso passa”. E de facto passava mesmo.
E hoje levaram-no. ..Dois homens fardados encaminharam-no para dentro de um grande carro com luzes no tecto.
Na aldeia, a agitação tomou conta dos lares, das ruas, das tascas.
Diz-se por aí que o padre era “Pedofilico” (acho que é assim que dizem). Eu não percebi bem o que isso é, ninguém me o quer explicar.
O meu irmão Rafa diz que tem qualquer coisa a ver com “fazer poucas-vergonhas com meninos”.
Agora que penso nisto...quantas foram as vezes que acordei deitado ao lado do velho padre, após noites em que se esvaziavam garrafas de bagaço pelos queixos a baixo?
Quando assim acontecia, não me recordava nada da noite anterior...
Será que?...
FILHO DA PUTA!

Joel, 9 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

sábado

A prece

Gosto muito de rezar antes de ir dormir.
Já ao Senhor, não sei se lhe agradam as minhas preces. Tudo o que lhe pedi saíu sempre ao contrário:
- Pedi a Deus que a Josefa (filha do Mestre Arnaldo) me amasse pra todo o sempre: ela foi viver para a frança na semana a seguir;
- Implorei que a colheita de beterraba viesse fértil : dois dias depois veio uma praga de gafanhotos mutantes, provenientes de um planeta bem distante (é a teoria do Tozé Fanecas), que destruiram tudo;
- Pedi sorte para a anual corrida de carrinho de mão: caíu-me um tronco de azinheiras nas trombas, fui cozido a sangue frio pela parteira da Rua Flácida, cheguei a casa atrasado e levei a sova com mais requintes de malvadez que a mãe alguma vez conseguiu aplicar (cintadas nos dedos mindinhos das mãos e dos pés)
E finalmente, a mais trágica:
- Supliquei ao Senhor que levasse a minha mãe para o além: no dia seguinte faleceu o pai, vitima de um impiedoso ataque de melros do mato, que lhe cravaram com o bico na testa até a cara do pai ficar completamente irreconhecivel.

Por tudo isto, hoje vou experimentar um formato diferente. Vou cantar para o senhor:


Jesus, meu senhor, dai-me forças pra vencer
Jesus, meu protector, quero deixar de beber
(SOBE TOM)
Ai Jesus, tua benção faz-me sentir mais além
Meu Jesus, meu Senhor, leva daqui a minha mãe
(MAIS UM TOM ACIMA!)
Oh Senhor, Protector, acredito que és capaz
Por Favor, mata-a já, que eu enterro-a lá atrás!

Joel, 7 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

quarta-feira

O amor

Hoje fiz o amor! Que me caiam os céus e as nuvéns no umbigo, que cantem todo o dia as formosas rolas nos pinheiros, que me beijem e me abracem os guaxinis! Voem, oh moscas verdes da pradaria...Desabrochem , oh malmequeres da encosta virgem! Dancem, oh meninas do rancho de Anarquim!
Para tudo ser perfeito só faltava ter sido com uma rapariga...
Mas a pequena ovelha do Quim Fisgas não lhes fica nada atrás.

Joel, 4 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

A Carrossa

Começou a Volta À Montanha em Carrossa!
A cada aldeia da região cabe a responsabilidade de construir a sua. Quanto às mulas, são fornecidas por um engenheiro espanhol, proprietário de uma casa de refeições, penso eu. Pelo menos recordo-me de ouvir o pai contar estórias aos amigos sobre “ a mulata que comeu no Pernabierta”. Nunca provei mulata, mas pela maneira como os olhos do papá cintilavam, deve ser um pitéu digno de registo!
A carrossa de Anarquim está uma verdadeira maravilha! Toda a aldeia se empenhou a fundo para apresentar a mais linda carrossa a concurso. Pintada em tons de amarelo e laranja, trata-se de um verdadeiro sol que ilumina as montanhas!Da minha parte fiz o que estava ao alcance das minhas capacidades: preguei, serrei, pintei, oleei as rodas, fiz as rédeas em corda de mentol, escovei a mula, lavei-lhe os dentes.
Como recompensa por todo o esforço que emprestei, a mãe decidiu por bem deixar-me em casa a limpar o rabo da minha irmã mais nova (a Clotilde), enquanto que o resto da irmandade foi contemplada com o direito de assistir ao grande arranque da competição!
E cá estou eu agora, a escrever ao som de gritos histéricos e desesperados da bébé, enquanto que os cabrões se divertem à grande!
Desculpa Clotilde, chora à vontade, mas não vou mexer na tua merda...

Joel, 2 de maio de 1970, Anarquim de Baixo

sábado

Ismael

Encontrei alguém especial. Não é humano, não fala, não brinca. Mas ouve-me...Eu sei que sim. Encontrei-o quando estava a limpar a banca onde desfiámos o feijão verde para vender no mercado de Anarquim de Cima ( a eterna aldeia rival).
Pequenino, esguiço, cor escura, aparência repulsiva. Só podia receber um nome : Ismael!
Preparei a caixinha de fósforos da forma mais acolhedora que consegui: dividi-a em dois pequenos compartimentos (a fazer lembrar o meu casebre) sendo que um será o quarto e o outro a casinha das necessidades.
Fiz também uma portinha para ele poder saír, se um dia se fartar. Mas eu não quero que ele vá! Decidi então construir a minha mãe em cartolina e colocá-la junto à portinha, para que o Ismael não se atreva a aproximar!
Para a cama, utilizei algodão para o colchão e folha de couve para o cobertor. Se calhar vou ter que pôr outra, porque à noite o tempo arrefece muito.
Quanto ao compartimento das necessidades, cobri-o com serradura, que estou certo que absorverá todo o chichi e cócó que o Ismael fizer.
A felicidade que senti quando tudo ficou pronto durou alguns minutos. O Rafa descobriu a caixa e decidiu brincar aos veterinários com o Ismael: cortou-lhe duas perninhas e empastou-o em manteiga de beterraba ,“para ver se ele gostava”.
Sim Rafa, quem não gosta de ser amputado e coberto com gordura?
O Ismael aínda se mexe, mas a minha esperança já está moribunda.
Em breve Ismael partirá para o reino celestial dos escaravelhos. O Rafa vai pagá-las...

Joel, 30 de Abril de 1970, Anarquim de Baixo

quarta-feira

o banho

Está frio hoje. Emprestei a minha camisola mais quentinha à minha irmã Carmelinda, que ela tem mais frio do que eu. Eu sou homem, não posso ter frio.
Hoje houve banhoca para todos...abençoado São Pedro, como sempre o é.
É regra cá de casa: a água do poço que o Sr. Gilberto nos oferece (normalmente três baldes por semana), é usada apenas para fazer a sopa de coentros (a nossa única refeição diária) e para bebermos um copinho antes de dormir. A mãe bebe um jarro .Ela diz que é por ser mais idosa, precisa mais do que nós. Adiante:
Mas que bem que soube o banho!Sabe sempre melhor quando é inesperado... Estavamos sentados no chão frio do casebre a jogar ao “calha o calhau” (um dia explico como se joga), quando sentimos a luz que incide sobre a pequena janela diminuir de intensidade. O rebuliço instalou-se entre todos nós! Só podia ser uma núvem!
Daí a caírem os primeiros pingos foi um ápice, e num ápice fomos para a rua usufruir da benção que é sentir a água penetrar nos poros da pele! Esfregámos o sabão de cenoura por todo o corpo e cantámos e rimos e chorámos com aquele momento tão abençoado.
O pior é sempre quando a chuva pára...O corpo arrefece e não há toalhas para nos secarmos. Para cúmulo dos azares, levantou-se uma ventania e ficámos todos cobertos por uma fina camada de poeira. Ao entrarmos em casa nesta triste figura, eis que surge mais um habitual ataque de fúria da mãe, contemplando-nos a todos com um belo festival de réguadas nas nádegas...

Joel, 27 de Abril de 1970, Anarquim de Baixo

terça-feira


lá fora o mundo respira...aqui dentro eu suspiro... Posted by Hello

não quero janelas

Quem me dera que a casa não tivesse janelas. Elas só servem para me fazer suspirar com liberdade, sonhar com uma vida a céu aberto, com uma simples ida à escola, com um simples jogo das escondidas...Não gosto de sonhar.
Não quero ser uma daquelas pessoas que dizem “ um dia hei-de...”, mesmo quando sabem perfeitamente que esse dia nunca vai chegar.
Eu sei que nunca hei-de ir à escola...sei que nunca vou poder brincar uma tarde inteira, a não ser com as couves e as cenouras que tenho que regar. E não encontro muita diversão quando conto as pingas de água que ficam em cada folha de couve...nem quando meço quantos dedos mindinhos cabem no comprimento das cenouras.
Por isso tapa as janelas mãe...eu não quero sonhar.

joel, 26 de abril de 1970, Anarquim de Baixo

segunda-feira

a ceia perfeita

Acordei sobressaltado...
O meu irmão Rafa não pára de tossir...rebolo por cima dos três com quem partilho o colchão de palha e calço as chinelas, rotas na dianteira.Vou à cozinha. Tenho fome...
Na bancada de pedra encontro um pedaço de carcaça, duro como uma viga de cimento.
Molho-a numa tigeja com água, para amolecer. Para ajudar a empurrar, espremo o sumo de uma cebola para um copo. Humm, que bem que sabe este esplendoroso repasto...
Ahh, como somos afortunados!

joel, 26 de abril de 1970, Anarquim de Baixo

colheita!

Hoje foi o grande dia! Adoro o dia da colheita...Todo o dia nos campos verdes a cantar e a recolher as bolotas para os cestos de vime! Todo o dia sem respirar o ar contaminado de Anarquim! Todo o dia sem levar uma chapada ou cumprir mais umas horas de escravatura caseira!
Ao final do dia, já com o sol escondido na montanha, regressamos em alegre passeata, entoando as mais lindas canções cá do burgo! A minha favorita é a “Linda Fazendeira”.

“Linda Fazendeira, que colhes a bolota
De sol a sol trabalhando sem parar!
Linda Fazendeira, a ruga nem se nota!
E o teu bigode faz-me suspirar!”

Adoro esta canção...
Ao chegarmos à aldeia, cada um se refugia no conforto do lar, despedindo-se com calorosas manifestaçoes de afecto.
Eu chego a casa, enfardo mais uma chapada da mãe e vou descascar as últimas 12 batatas que restam na saca.

joel, 26 de abril de 1970, Anarquim de Baixo

eu, os meus pais e os meus dois irmãos mais novos. A foto data de 1964. Tinha 6 anos... Posted by Hello

que bela noticia...

Quero lá saber.
A minha mãe está de novo grávida. Acho que faz muito bem... O pai deve estar a adorar a ideia!Aposto que está a dar uma grande festa no túmulo...Aliás, quem não gostaria de receber esta noticia?!
O facto de sermos 8 irmãos e vivermos numa casa a caír de podre com dois pequenos compartimentos não nos tira a felicidade estampada no rosto...
O facto de não termos um tostão e de o ano estar mais seco do que nunca e de a colheita de batatas ser escassa nos nos tira das sete quintas...
O facto de a minha irmã mais novinha estar com tubercolose não nos impedirá de celebrar o milagre que é a vida...
O facto de o pai da criança ser o Zé das Vacas, o lenhador mais ransoso de toda a região não nos tira a esperança de o rebento saír mais perfeito do que qualquer um de nós...
O facto de o bébé ter sido feito (pelas minhas contas) 4 meses antes de o pai morrer não nos deixa magoados com a mãe...
O facto de ela fazer o anúncio da gravidez 13 dias, 14 horas e 23 segundos depois da morte do pai não nos deixa estupefactos...
Puta... A minha mãe é uma puta.

joel, 25 de abril de 1970, anarquim de baixo

ai pai...

O pai morreu faz hoje oito dias...mas continuamos a ser alimentados a pão e coentros. Porquê? Não sei...perguntem à mãe. Quando o fiz recebi em troca uma amável chapada na face esquerda. Não esperem que o faça outra vez. De ora avante impera a lei do come e cála.
Malditos coentros...Juro que se descubro quem descobriu os seus poderes culinários, aniquilarei qualquer hipótese de esse génio voltar a andar.
Ai pai...fazes uma certa falta aqui em casa...já ninguém chega a roupa ao pelo à mãe...
Se eu pudesse...se eu pudesse matava-a...Mas não posso...
Hoje não.
Quando penso em ti, meu pobre pai...recordo-me daquela maravilhosa tarde em que me ensinaste a amanhar as tripas de um rato.
É engraçado...Quando alguém parte surgem-nos à memória pequenos momentos que ansiamos poder reviver uma vez mais, mais intensamente, mais peculiarmente, mais...apenas mais.
Trocava o mundo para te poder ter ao meu lado pai, enquanto me indicas o melhor sitio por onde começar a estrinchar o pobre rato que aínda espasma.
Acho que quando a mãe morrer vou sorrir...vou agradecer a Deus o eterno castigo que estou certo que lhe será aplicado.
E não a vou recordar...Eu sei que não...

joel, 23 de abril de 1970, Anarquim de Baixo