sábado

Ismael

Encontrei alguém especial. Não é humano, não fala, não brinca. Mas ouve-me...Eu sei que sim. Encontrei-o quando estava a limpar a banca onde desfiámos o feijão verde para vender no mercado de Anarquim de Cima ( a eterna aldeia rival).
Pequenino, esguiço, cor escura, aparência repulsiva. Só podia receber um nome : Ismael!
Preparei a caixinha de fósforos da forma mais acolhedora que consegui: dividi-a em dois pequenos compartimentos (a fazer lembrar o meu casebre) sendo que um será o quarto e o outro a casinha das necessidades.
Fiz também uma portinha para ele poder saír, se um dia se fartar. Mas eu não quero que ele vá! Decidi então construir a minha mãe em cartolina e colocá-la junto à portinha, para que o Ismael não se atreva a aproximar!
Para a cama, utilizei algodão para o colchão e folha de couve para o cobertor. Se calhar vou ter que pôr outra, porque à noite o tempo arrefece muito.
Quanto ao compartimento das necessidades, cobri-o com serradura, que estou certo que absorverá todo o chichi e cócó que o Ismael fizer.
A felicidade que senti quando tudo ficou pronto durou alguns minutos. O Rafa descobriu a caixa e decidiu brincar aos veterinários com o Ismael: cortou-lhe duas perninhas e empastou-o em manteiga de beterraba ,“para ver se ele gostava”.
Sim Rafa, quem não gosta de ser amputado e coberto com gordura?
O Ismael aínda se mexe, mas a minha esperança já está moribunda.
Em breve Ismael partirá para o reino celestial dos escaravelhos. O Rafa vai pagá-las...

Joel, 30 de Abril de 1970, Anarquim de Baixo