Estava em casa, sentado no chão frio da cozinha a rabiscar no meu caderno quando oiço alguém bater à porta.
-Quem é?- perguntei de imediato, deixando transparecer alguma excitação por haver alguém que se digna de vir cá a casa.
-Sô o Paulo Covas- responderam do outro lado com uma voz entediada.
O Paulo Covas....eu logo vi que era bom de mais...A haver alguém a tocar à nossa porta numa tarde soalheira como esta, tinha que ser o puto mais arruaceiro e atrasado de Anarquim.
Ainda me ocorreu dizer-lhe que não estava ninguém em casa (acreditem, ele caía nessa!), mas lá decidi abrir-lhe a porta.
-Juel, arranja aí uma equipá pa vir jugar ao bola contra á gente. Daqui a mêa ora apareçam lá no descampado do Cajó. Se na apareces levas nos cornos. Tu e os tês irmões.
E pronto. Perante isto que podia eu dizer? Acenei temerosamente a cabeça, fechei delicadamente a porta e comecei a fazer contas à vida.
Cá de casa os únicos que têm forças para fazer mover a bola com um chuto sou eu e o Rafa ( e mesmo assim já é grande o esforço...).
O único senão é que o Rafa tinha ido à feira de Rebelhão com a mãe...
-Pronto, estou f***do! – suspirei enquanto me equipava...
Quando o relógio batia as dezasseis horas e trinta e dois minutos, apareci no descampado. As balizas (feitas com ramos de Bananeira), estavam já montadas e colocadas no devido lugar. A bola (feita de jornal e envolta em folhas de couve) encontrava-se já no centro do terreno de jogo. Quanto à equipa adversária, não havia sinais da sua presença, nem mesmo da sua eminente chegada...
Para enganar o tempo, decidi ir dar uns toques no esférico. Comecei a correr na sua direcção, e qual não é o meu espanto quando sinto o piso abater sobre os meus pés, levando-me a caír num profundo buraco.
“Cabrões...prepararam-me uma armadilha!” - pensei enquanto esperava o momento em que o corpo embatesse no fundo da cova. E quando assim aconteceu, como se tivesse pressionado um botão, mil e uma gargalhadas surgiram, provenientes de toda a periferia do descampado...
Uma a uma, foram surgindo cabeças lá no topo, ávidas por me ver estatelado e ferido, no chão da toca.
Aos poucos lá se foram retirando, deixando-me ali, indefezo e diminuido fisicamente. A muito esforço trepei para a superficie. Era já noite quando a alcancei.
Chegado a casa, a mãe nem precisou de dizer nada...já sabia o que me esperava.
Por cima de umas quantas escoriações, cabe sempre mais um par de chapadas.
Joel, 31 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
terça-feira
Malditas leis!
Acordei, lavei a cara no charco sujo que a chuva matutina proporcionou. Respirei fundo e pensei para os meus botões: “ Boa sorte puto!”.
Caminhei em passos largos para a Junta. Debaixo do braço, levava “ A chacina”, a obra-prima que criei.
Chegado ao destino, requeri uma “audiência” (sim, porque para a recepcionista o facto de eu dizer que queria falar com o Sr. Esdrubal Gonçalves soaria a provocação) com o presidente da Junta.
Foi-me pedido que aguardasse “alguns minutos”, porque o Sr.Presidente estava numa importante reunião. A verdade é que esses minutos foram horas...Duas horas e vinte e três minutos, para ser mais preciso. Creio que contei mais de cem vezes o número de acnes que a recepcionista tinha na cara.
Mas enfim, lá acabei por ser recebido, sem que me apercebesse dos restantes elementos presentes na "reunião".
Entrei, sentei-me na incrivelmente desconfortável e pêndula cadeira de madeira.Expus o assunto que ali me trouxe:
“ Senhor presidente, gostaria de saber qual a receptividade que Anarquim disponibilizaria para encenar uma peça de teatro que escrevi...”
“Bom, jovem...” - respondeu hesitante – “Anarquim nunca fecha os olhos à cultura...Aliás, amanhã mesmo inauguramos a SACSC (Semana dos Anarquenses Com A Segunda Classe). Mas diz-me lá pequeno...de que peça se trata?”
“Aqui tem”- respondi prontamente, sem conseguir evitar que um largo sorriso orgulhoso me escapasse da boca.
O senhor presidente pegou nas folhas, sentou-se e iniciou a leitura em silêncio. A partir desse momento, o seu olhar tornou-se carregado, surpreso, alternando a folha de papel com a minha pessoa. Apenas uma tosse forçada interrompia o pesado silêncio que de imediato se fez sentir.
Concluida a leitura, o Sr. Esdrubal pediu licença e saíu, justificando que tinha que ir à casa de banho...
Do silêncio, escutei um longinquo som que se assemelhava ao de um vómito.
“Humm...” – pensei para mim – “ Algo me diz que não gostou!”
Voltou à sala poucos minuos depois, trazendo consigo um sorriso que me deixou mais tranquilo.
“Desculpa lá isto...É que tive a comer torresmos em jejum, caíram-me mal. Sabes míudo...” – disse com a maior das serenidades – “A peça está boa, tem conteúdo, tem emoção, tem drama, tem acção...Mas creio que não é de todo viável a sua encenação em Anarquim...”
Desapontado, inquiri o presidente sobre o motivo pelo qual tomara esse veredicto.
Respondeu-me:
“O uso de palavras obscenas em Anarquim apenas é permitido por lei a partir da meia noite...e a essa hora a sala de espectáculos de Anarquim (um casebre nojento a caír de podre) está alugado pela AATD (Associação de Aperfeiçoamento das Técnicas de Dominó)...Lamento.”
Contra estes argumentos, não havia contra-ataque possível... “A chacina” sem calão seria como jogar ao bate pé só com beijos na cara...
Joel, 24 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
Caminhei em passos largos para a Junta. Debaixo do braço, levava “ A chacina”, a obra-prima que criei.
Chegado ao destino, requeri uma “audiência” (sim, porque para a recepcionista o facto de eu dizer que queria falar com o Sr. Esdrubal Gonçalves soaria a provocação) com o presidente da Junta.
Foi-me pedido que aguardasse “alguns minutos”, porque o Sr.Presidente estava numa importante reunião. A verdade é que esses minutos foram horas...Duas horas e vinte e três minutos, para ser mais preciso. Creio que contei mais de cem vezes o número de acnes que a recepcionista tinha na cara.
Mas enfim, lá acabei por ser recebido, sem que me apercebesse dos restantes elementos presentes na "reunião".
Entrei, sentei-me na incrivelmente desconfortável e pêndula cadeira de madeira.Expus o assunto que ali me trouxe:
“ Senhor presidente, gostaria de saber qual a receptividade que Anarquim disponibilizaria para encenar uma peça de teatro que escrevi...”
“Bom, jovem...” - respondeu hesitante – “Anarquim nunca fecha os olhos à cultura...Aliás, amanhã mesmo inauguramos a SACSC (Semana dos Anarquenses Com A Segunda Classe). Mas diz-me lá pequeno...de que peça se trata?”
“Aqui tem”- respondi prontamente, sem conseguir evitar que um largo sorriso orgulhoso me escapasse da boca.
O senhor presidente pegou nas folhas, sentou-se e iniciou a leitura em silêncio. A partir desse momento, o seu olhar tornou-se carregado, surpreso, alternando a folha de papel com a minha pessoa. Apenas uma tosse forçada interrompia o pesado silêncio que de imediato se fez sentir.
Concluida a leitura, o Sr. Esdrubal pediu licença e saíu, justificando que tinha que ir à casa de banho...
Do silêncio, escutei um longinquo som que se assemelhava ao de um vómito.
“Humm...” – pensei para mim – “ Algo me diz que não gostou!”
Voltou à sala poucos minuos depois, trazendo consigo um sorriso que me deixou mais tranquilo.
“Desculpa lá isto...É que tive a comer torresmos em jejum, caíram-me mal. Sabes míudo...” – disse com a maior das serenidades – “A peça está boa, tem conteúdo, tem emoção, tem drama, tem acção...Mas creio que não é de todo viável a sua encenação em Anarquim...”
Desapontado, inquiri o presidente sobre o motivo pelo qual tomara esse veredicto.
Respondeu-me:
“O uso de palavras obscenas em Anarquim apenas é permitido por lei a partir da meia noite...e a essa hora a sala de espectáculos de Anarquim (um casebre nojento a caír de podre) está alugado pela AATD (Associação de Aperfeiçoamento das Técnicas de Dominó)...Lamento.”
Contra estes argumentos, não havia contra-ataque possível... “A chacina” sem calão seria como jogar ao bate pé só com beijos na cara...
Joel, 24 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
sábado
quinta-feira
A peça
Estava a tentar adormecer quando idealizei aquilo que poderá um dia vir a ser a grande peça de teatro da actualidade. Eis os actos:
A CHACINA
ACTO 1
A acção desenrola-se numa divisão que alberga cozinha e sala de refeições. As paredes de pedra negra transmitem uma luminosidade obscura ao ambiente. Junto a uma bancada de pedra, uma mulher descasca feijão verde para dentro de um grande alguidar.
No centro, junto a uma pequena mesa de madeira podre, encontra-se o seu filho sentado numa cadeira de vime a rabiscar no seu pequeno caderno.
Sem nunca estabelecer um contacto visual, a mãe inicia a conversa:
MÃE: (com uma voz grosseira e autoritária)
“ Oh puto do c***lho, vai ali atrás à horta apanhar umas folhas de couve para pôr na sopa”
O filho fita-a de alto abaixo com desdem e responde-lhe à letra.
JOEL: (revoltado) “Fo**-se! Vai tu, oh velha do c***lho!
A mãe aparenta estupefacção com a bravura da resposta do rebento. Quando se prepara para se virar e lhe espetar um murro nas fussas, Joel, em antecipação, espeta-lhe com um garfo na testa.
A mãe cai redonda no chão. Joel verifica-lhe a pulsação. Ergue as mãos para o céu e exclama:
JOEL: Hihihi, finalmente matei a P*TA!! Aleluia!!!
Desconfiado, certifica-se que ninguém se encontra em casa. Arrasta o corpo para as traseiras da habitação, onde cava um imenso buraco. Antes de lançar o corpo inerte para o seu interior, dirige-se à arrecadação, de onde regressa com um serrote. Olha de novo em redor. Urina para dentro do buraco. Lança o corpo para o seu interior. Tapa-o e entra em casa, levando algo na mão.
FIM DO ACTO 1
ACTO 2
A acção desenrola-se de novo no compartimento que alberga cozinha e sala de refeições. À mesa, cinco irmãos ceiam. O silêncio é apenas interrompido pelo som dos talheres e do mastigar de alimentos. Até que Rafa decide falar...
RAFA: (curioso) “ Oh Joel, mas explica lá melhor, que aínda não entendi...Onde está a mãe?”
Joel aparenta impaciência...Coça a cabeça, respira fundo e dispara:
“ Olha Rafa, a mãe ESTÁ ENTERRADA LÁ ATRÁS. SE FORES LÁ VER, NOTARÁS QUE LHE FALTA UM BRAÇO. JÁ AGORA IRMÃOS, DIGAM-ME LÁ... NÃO ESTÁ DELICIOSO ESTE ASSADO DE COTOVELO?! A MÃE É OU NÃO É UM RICO PITÉU???”
Os mais novos reagem gritando, chorando, babando-se. Rafa levanta-se e olha Joel nos olhos. Assim que tenta esboçar um movimento na sua direcção,Joel corta-lhe a garganta com a faca do pão. O pânico instala-se. Os choros e os gritos aumentam. Joel ri-se desalmadamente. E um a um, corta a goela a todos os irmãos.
Coberto de sangue, Joel toma um copo de vinho tinto e adormece em cima da mesa.
FIM
Agora digam-me se não foi a melhor peça que leram nos últimos tempos.!
Joel, 19 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
A CHACINA
ACTO 1
A acção desenrola-se numa divisão que alberga cozinha e sala de refeições. As paredes de pedra negra transmitem uma luminosidade obscura ao ambiente. Junto a uma bancada de pedra, uma mulher descasca feijão verde para dentro de um grande alguidar.
No centro, junto a uma pequena mesa de madeira podre, encontra-se o seu filho sentado numa cadeira de vime a rabiscar no seu pequeno caderno.
Sem nunca estabelecer um contacto visual, a mãe inicia a conversa:
MÃE: (com uma voz grosseira e autoritária)
“ Oh puto do c***lho, vai ali atrás à horta apanhar umas folhas de couve para pôr na sopa”
O filho fita-a de alto abaixo com desdem e responde-lhe à letra.
JOEL: (revoltado) “Fo**-se! Vai tu, oh velha do c***lho!
A mãe aparenta estupefacção com a bravura da resposta do rebento. Quando se prepara para se virar e lhe espetar um murro nas fussas, Joel, em antecipação, espeta-lhe com um garfo na testa.
A mãe cai redonda no chão. Joel verifica-lhe a pulsação. Ergue as mãos para o céu e exclama:
JOEL: Hihihi, finalmente matei a P*TA!! Aleluia!!!
Desconfiado, certifica-se que ninguém se encontra em casa. Arrasta o corpo para as traseiras da habitação, onde cava um imenso buraco. Antes de lançar o corpo inerte para o seu interior, dirige-se à arrecadação, de onde regressa com um serrote. Olha de novo em redor. Urina para dentro do buraco. Lança o corpo para o seu interior. Tapa-o e entra em casa, levando algo na mão.
FIM DO ACTO 1
ACTO 2
A acção desenrola-se de novo no compartimento que alberga cozinha e sala de refeições. À mesa, cinco irmãos ceiam. O silêncio é apenas interrompido pelo som dos talheres e do mastigar de alimentos. Até que Rafa decide falar...
RAFA: (curioso) “ Oh Joel, mas explica lá melhor, que aínda não entendi...Onde está a mãe?”
Joel aparenta impaciência...Coça a cabeça, respira fundo e dispara:
“ Olha Rafa, a mãe ESTÁ ENTERRADA LÁ ATRÁS. SE FORES LÁ VER, NOTARÁS QUE LHE FALTA UM BRAÇO. JÁ AGORA IRMÃOS, DIGAM-ME LÁ... NÃO ESTÁ DELICIOSO ESTE ASSADO DE COTOVELO?! A MÃE É OU NÃO É UM RICO PITÉU???”
Os mais novos reagem gritando, chorando, babando-se. Rafa levanta-se e olha Joel nos olhos. Assim que tenta esboçar um movimento na sua direcção,Joel corta-lhe a garganta com a faca do pão. O pânico instala-se. Os choros e os gritos aumentam. Joel ri-se desalmadamente. E um a um, corta a goela a todos os irmãos.
Coberto de sangue, Joel toma um copo de vinho tinto e adormece em cima da mesa.
FIM
Agora digam-me se não foi a melhor peça que leram nos últimos tempos.!
Joel, 19 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
terça-feira
Para mim?
Mais uma procissão de Nossa Senhora dos Aleijados, a santa padroeira de Anarquim.
De tarde, desfilam pelas ruas os desmembrados, os aleijados, os atrofiados, os doidos, as reumáticas, os bêbados. Quem não preenche estes requisitos enfileira-se junto ao percurso, bate palmas e lança pétalas de girassol sobre o cortejo. Este ano eramos doze a assistir, contando comigo.
À noite, um conjunto anima as hostes (este ano a banda filarmónica de Beijocas foi a escolhida), enquanto que o povo participa numa mega churrascada de pernas de rã.
O vinho jorra a grande ritmo, as pipas secam num ápice, as gargantas entoam canções de amor...
Já com os meus copinhos acentes no estômago, contemplo a mais bela das meninas de Anarquim, a Almerinda.
As pernas fraquejam quando a vejo apontar para mim...Não quero acreditar que me está a chamar.
Hesito, e com um pequeno gesto procuro confirmar se é mesmo a mim que ela chama. Ela acena com a cabeça, parecendo responder afirmativamente.
Nervosamente, começo a percorrer os vinte e dois metros que me separam dela.
Ela sorri...
Eu respondo com um sorriso que me divide a face em dois. Ela abre os seus braços, pronta para me receber.
No momento em que me preparo para fazer o mesmo gesto, sou literalmente abalroado por um Perdigueiro, que lhe salta para o colo. Ela abraça-o e sorri...Olha em redor. Beija-o, rejubila...E num segundo, desaparece por entre a múltidão.
És mesmo estúpido Joel!
Joel, 17 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo.
De tarde, desfilam pelas ruas os desmembrados, os aleijados, os atrofiados, os doidos, as reumáticas, os bêbados. Quem não preenche estes requisitos enfileira-se junto ao percurso, bate palmas e lança pétalas de girassol sobre o cortejo. Este ano eramos doze a assistir, contando comigo.
À noite, um conjunto anima as hostes (este ano a banda filarmónica de Beijocas foi a escolhida), enquanto que o povo participa numa mega churrascada de pernas de rã.
O vinho jorra a grande ritmo, as pipas secam num ápice, as gargantas entoam canções de amor...
Já com os meus copinhos acentes no estômago, contemplo a mais bela das meninas de Anarquim, a Almerinda.
As pernas fraquejam quando a vejo apontar para mim...Não quero acreditar que me está a chamar.
Hesito, e com um pequeno gesto procuro confirmar se é mesmo a mim que ela chama. Ela acena com a cabeça, parecendo responder afirmativamente.
Nervosamente, começo a percorrer os vinte e dois metros que me separam dela.
Ela sorri...
Eu respondo com um sorriso que me divide a face em dois. Ela abre os seus braços, pronta para me receber.
No momento em que me preparo para fazer o mesmo gesto, sou literalmente abalroado por um Perdigueiro, que lhe salta para o colo. Ela abraça-o e sorri...Olha em redor. Beija-o, rejubila...E num segundo, desaparece por entre a múltidão.
És mesmo estúpido Joel!
Joel, 17 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo.
segunda-feira
Até sempre Madalena...
A mãe vendeu a minha irmã mais nova.
Madalena, 4 anos, olhos negros como carvão. Linda de morrer.Catorze centavos, o que rendeu...
Comprou-a um casal das Requeijoas, pequeno arquipélago situado no Mar das Courgetes. Parecem ser pessoas de bem, embora o facto de serem das ilhas me faça temer pelo pior: trinchar a pequena e usá-la como isco para a pesca do Açafrão. Contam-se histórias de casos semelhantes aqui no burgo.Mito rural, espero...
Com a pequena fortuna, a mãe não perdeu tempo, abastecendo a pequena dispensa com os (seus) bens de primeira necessidade: cinco garrafões de tinto (da adega do Sr. Alfeu, a melhor pinga da região!), três chouriças de sangue de ovelha, dois quilos de sementes de ginja ( para a irmandade ir plantar, claro), duas dúzias de ovos de coderniz e a joia da coroa: um pequeno cabrito,que de imediato apelidamos de Ernesto.
Eram duas e meia da tarde quando brinquei alegremente com o Ernesto no quintal.
Às oito e meia, do Ernesto já só restavam os ossos que ninguém quis roer...
Obrigado Madalena...a ti devemos a primeira refeição em meses que não leva coentros...
Joel, 16 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
Madalena, 4 anos, olhos negros como carvão. Linda de morrer.Catorze centavos, o que rendeu...
Comprou-a um casal das Requeijoas, pequeno arquipélago situado no Mar das Courgetes. Parecem ser pessoas de bem, embora o facto de serem das ilhas me faça temer pelo pior: trinchar a pequena e usá-la como isco para a pesca do Açafrão. Contam-se histórias de casos semelhantes aqui no burgo.Mito rural, espero...
Com a pequena fortuna, a mãe não perdeu tempo, abastecendo a pequena dispensa com os (seus) bens de primeira necessidade: cinco garrafões de tinto (da adega do Sr. Alfeu, a melhor pinga da região!), três chouriças de sangue de ovelha, dois quilos de sementes de ginja ( para a irmandade ir plantar, claro), duas dúzias de ovos de coderniz e a joia da coroa: um pequeno cabrito,que de imediato apelidamos de Ernesto.
Eram duas e meia da tarde quando brinquei alegremente com o Ernesto no quintal.
Às oito e meia, do Ernesto já só restavam os ossos que ninguém quis roer...
Obrigado Madalena...a ti devemos a primeira refeição em meses que não leva coentros...
Joel, 16 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
quinta-feira
O misterioso assobio
Quando menos esperamos, algo de bom pode acontecer às nossas vidas.Mas mais cedo ou mais tarde, a desilusão chega sempre. Sempre. Aprendi-o hoje...
Estive todo o dia no pomar do Sr.Tobias, um velho produtor de Cerejas Azuladas, que todos os anos solicita a minha ajuda para colher toda a fruta para caixotes. Em troca, quando o sol se despede e a lua nos cumprimenta, o velho dá-me 4 sandes de queijo, uma perna de presunto e duas garrafas de Geropiga. Seria um salário de luxo, nao fosse o facto de a mãe trinchar todo o presunto sozinha e mamar as duas garrafas em menos de 10 minutos. Assim, só posso contar mesmo com as sandochas, que divido com os meus irmãos.
Mas como estava a dizer: algo de maravilhoso me aconteceu hoje. A escuridão já engolira Anarquim, e eu regressava a casa exausto. Vinha a assobiar a música da "linda fazendeira", quando da escuridão, se junta a mim um assobio lindo, perfeito, cristalino, divinal!! O som parecia vir de longe, mas foi-se aproximando aos pouquinhos. Daí a uns segundos, eram poucos os metros que me separavam da misteriosa pessoa que assobiava comigo tão linda canção.
É estranho transpôr para palavras o que senti...Não foi medo, não foi curiosidade, não sei o que foi. Só posso dizer que o meu coração palpitava contra as costelas, parecendo querer fugir do corpo para sempre. E mais viemente palpitou quando senti uma mão tocar na minha...
Quando a tentei agarrar, o assobio parou e escutei o som de um corpo fugir por entre a vegetação. O silêncio voltou a abraçar a noite escura.
Já chegado a Anarquim, deparo com o meu irmão Rafa sentado à porta de casa, assobiando "a linda fazendeira", enquanto que a Carmelinda se ria que nem uma desalmada...
Que pena...menos dois a comer pão com queijo...
Joel, 12 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
Estive todo o dia no pomar do Sr.Tobias, um velho produtor de Cerejas Azuladas, que todos os anos solicita a minha ajuda para colher toda a fruta para caixotes. Em troca, quando o sol se despede e a lua nos cumprimenta, o velho dá-me 4 sandes de queijo, uma perna de presunto e duas garrafas de Geropiga. Seria um salário de luxo, nao fosse o facto de a mãe trinchar todo o presunto sozinha e mamar as duas garrafas em menos de 10 minutos. Assim, só posso contar mesmo com as sandochas, que divido com os meus irmãos.
Mas como estava a dizer: algo de maravilhoso me aconteceu hoje. A escuridão já engolira Anarquim, e eu regressava a casa exausto. Vinha a assobiar a música da "linda fazendeira", quando da escuridão, se junta a mim um assobio lindo, perfeito, cristalino, divinal!! O som parecia vir de longe, mas foi-se aproximando aos pouquinhos. Daí a uns segundos, eram poucos os metros que me separavam da misteriosa pessoa que assobiava comigo tão linda canção.
É estranho transpôr para palavras o que senti...Não foi medo, não foi curiosidade, não sei o que foi. Só posso dizer que o meu coração palpitava contra as costelas, parecendo querer fugir do corpo para sempre. E mais viemente palpitou quando senti uma mão tocar na minha...
Quando a tentei agarrar, o assobio parou e escutei o som de um corpo fugir por entre a vegetação. O silêncio voltou a abraçar a noite escura.
Já chegado a Anarquim, deparo com o meu irmão Rafa sentado à porta de casa, assobiando "a linda fazendeira", enquanto que a Carmelinda se ria que nem uma desalmada...
Que pena...menos dois a comer pão com queijo...
Joel, 12 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
segunda-feira
Padre Tomás
Nem me lembro da última ve que tinha chorado. Mas hoje não o consegui evitar.
O Padre Tomás deixou-nos. A pessoa mais bondosa, mais querida, mais humana que alguma vez conheci deixou-nos.
Entre nós os dois, havia uma grande cumplicidade...Era a ele que recorria assim que um problema se cruzava com a minha triste existência.
Era ele quem me afagava contra o seu peito e me dizia carinhosamente ao ouvido: “não te preocupes Joel, tudo vai ficar bem”.
Foi com ele que andei de carro pela primeira (e única) vez, aquando de uma visita que fez a uns amigos do Olival das Bananas. Foram dois minutos de viagem, mas que na minha memória durarão anos a fio...até eu morrer.
Com o Padre Tomás aprendi a escutar a voz sábia dos anciãos, a cultivar amendoins, a cantar para Jesus, a amar a natureza, a amar a vida.
Recordo-me da frase que tantas vezes me dizia : “ Quando pensares que a vida não te sorri, que o mundo não compreende a dor que dilacera o teu peito, bebe um bagaço. Vais ver que isso passa”. E de facto passava mesmo.
E hoje levaram-no. ..Dois homens fardados encaminharam-no para dentro de um grande carro com luzes no tecto.
Na aldeia, a agitação tomou conta dos lares, das ruas, das tascas.
Diz-se por aí que o padre era “Pedofilico” (acho que é assim que dizem). Eu não percebi bem o que isso é, ninguém me o quer explicar.
O meu irmão Rafa diz que tem qualquer coisa a ver com “fazer poucas-vergonhas com meninos”.
Agora que penso nisto...quantas foram as vezes que acordei deitado ao lado do velho padre, após noites em que se esvaziavam garrafas de bagaço pelos queixos a baixo?
Quando assim acontecia, não me recordava nada da noite anterior...
Será que?...
FILHO DA PUTA!
Joel, 9 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
O Padre Tomás deixou-nos. A pessoa mais bondosa, mais querida, mais humana que alguma vez conheci deixou-nos.
Entre nós os dois, havia uma grande cumplicidade...Era a ele que recorria assim que um problema se cruzava com a minha triste existência.
Era ele quem me afagava contra o seu peito e me dizia carinhosamente ao ouvido: “não te preocupes Joel, tudo vai ficar bem”.
Foi com ele que andei de carro pela primeira (e única) vez, aquando de uma visita que fez a uns amigos do Olival das Bananas. Foram dois minutos de viagem, mas que na minha memória durarão anos a fio...até eu morrer.
Com o Padre Tomás aprendi a escutar a voz sábia dos anciãos, a cultivar amendoins, a cantar para Jesus, a amar a natureza, a amar a vida.
Recordo-me da frase que tantas vezes me dizia : “ Quando pensares que a vida não te sorri, que o mundo não compreende a dor que dilacera o teu peito, bebe um bagaço. Vais ver que isso passa”. E de facto passava mesmo.
E hoje levaram-no. ..Dois homens fardados encaminharam-no para dentro de um grande carro com luzes no tecto.
Na aldeia, a agitação tomou conta dos lares, das ruas, das tascas.
Diz-se por aí que o padre era “Pedofilico” (acho que é assim que dizem). Eu não percebi bem o que isso é, ninguém me o quer explicar.
O meu irmão Rafa diz que tem qualquer coisa a ver com “fazer poucas-vergonhas com meninos”.
Agora que penso nisto...quantas foram as vezes que acordei deitado ao lado do velho padre, após noites em que se esvaziavam garrafas de bagaço pelos queixos a baixo?
Quando assim acontecia, não me recordava nada da noite anterior...
Será que?...
FILHO DA PUTA!
Joel, 9 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
sábado
A prece
Gosto muito de rezar antes de ir dormir.
Já ao Senhor, não sei se lhe agradam as minhas preces. Tudo o que lhe pedi saíu sempre ao contrário:
- Pedi a Deus que a Josefa (filha do Mestre Arnaldo) me amasse pra todo o sempre: ela foi viver para a frança na semana a seguir;
- Implorei que a colheita de beterraba viesse fértil : dois dias depois veio uma praga de gafanhotos mutantes, provenientes de um planeta bem distante (é a teoria do Tozé Fanecas), que destruiram tudo;
- Pedi sorte para a anual corrida de carrinho de mão: caíu-me um tronco de azinheiras nas trombas, fui cozido a sangue frio pela parteira da Rua Flácida, cheguei a casa atrasado e levei a sova com mais requintes de malvadez que a mãe alguma vez conseguiu aplicar (cintadas nos dedos mindinhos das mãos e dos pés)
E finalmente, a mais trágica:
- Supliquei ao Senhor que levasse a minha mãe para o além: no dia seguinte faleceu o pai, vitima de um impiedoso ataque de melros do mato, que lhe cravaram com o bico na testa até a cara do pai ficar completamente irreconhecivel.
Por tudo isto, hoje vou experimentar um formato diferente. Vou cantar para o senhor:
Jesus, meu senhor, dai-me forças pra vencer
Jesus, meu protector, quero deixar de beber
(SOBE TOM)
Ai Jesus, tua benção faz-me sentir mais além
Meu Jesus, meu Senhor, leva daqui a minha mãe
(MAIS UM TOM ACIMA!)
Oh Senhor, Protector, acredito que és capaz
Por Favor, mata-a já, que eu enterro-a lá atrás!
Joel, 7 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
Já ao Senhor, não sei se lhe agradam as minhas preces. Tudo o que lhe pedi saíu sempre ao contrário:
- Pedi a Deus que a Josefa (filha do Mestre Arnaldo) me amasse pra todo o sempre: ela foi viver para a frança na semana a seguir;
- Implorei que a colheita de beterraba viesse fértil : dois dias depois veio uma praga de gafanhotos mutantes, provenientes de um planeta bem distante (é a teoria do Tozé Fanecas), que destruiram tudo;
- Pedi sorte para a anual corrida de carrinho de mão: caíu-me um tronco de azinheiras nas trombas, fui cozido a sangue frio pela parteira da Rua Flácida, cheguei a casa atrasado e levei a sova com mais requintes de malvadez que a mãe alguma vez conseguiu aplicar (cintadas nos dedos mindinhos das mãos e dos pés)
E finalmente, a mais trágica:
- Supliquei ao Senhor que levasse a minha mãe para o além: no dia seguinte faleceu o pai, vitima de um impiedoso ataque de melros do mato, que lhe cravaram com o bico na testa até a cara do pai ficar completamente irreconhecivel.
Por tudo isto, hoje vou experimentar um formato diferente. Vou cantar para o senhor:
Jesus, meu senhor, dai-me forças pra vencer
Jesus, meu protector, quero deixar de beber
(SOBE TOM)
Ai Jesus, tua benção faz-me sentir mais além
Meu Jesus, meu Senhor, leva daqui a minha mãe
(MAIS UM TOM ACIMA!)
Oh Senhor, Protector, acredito que és capaz
Por Favor, mata-a já, que eu enterro-a lá atrás!
Joel, 7 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
quarta-feira
O amor
Hoje fiz o amor! Que me caiam os céus e as nuvéns no umbigo, que cantem todo o dia as formosas rolas nos pinheiros, que me beijem e me abracem os guaxinis! Voem, oh moscas verdes da pradaria...Desabrochem , oh malmequeres da encosta virgem! Dancem, oh meninas do rancho de Anarquim!
Para tudo ser perfeito só faltava ter sido com uma rapariga...
Mas a pequena ovelha do Quim Fisgas não lhes fica nada atrás.
Joel, 4 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
Para tudo ser perfeito só faltava ter sido com uma rapariga...
Mas a pequena ovelha do Quim Fisgas não lhes fica nada atrás.
Joel, 4 de Maio de 1970, Anarquim de Baixo
segunda-feira
A Carrossa
Começou a Volta À Montanha em Carrossa!
A cada aldeia da região cabe a responsabilidade de construir a sua. Quanto às mulas, são fornecidas por um engenheiro espanhol, proprietário de uma casa de refeições, penso eu. Pelo menos recordo-me de ouvir o pai contar estórias aos amigos sobre “ a mulata que comeu no Pernabierta”. Nunca provei mulata, mas pela maneira como os olhos do papá cintilavam, deve ser um pitéu digno de registo!
A carrossa de Anarquim está uma verdadeira maravilha! Toda a aldeia se empenhou a fundo para apresentar a mais linda carrossa a concurso. Pintada em tons de amarelo e laranja, trata-se de um verdadeiro sol que ilumina as montanhas!Da minha parte fiz o que estava ao alcance das minhas capacidades: preguei, serrei, pintei, oleei as rodas, fiz as rédeas em corda de mentol, escovei a mula, lavei-lhe os dentes.
Como recompensa por todo o esforço que emprestei, a mãe decidiu por bem deixar-me em casa a limpar o rabo da minha irmã mais nova (a Clotilde), enquanto que o resto da irmandade foi contemplada com o direito de assistir ao grande arranque da competição!
E cá estou eu agora, a escrever ao som de gritos histéricos e desesperados da bébé, enquanto que os cabrões se divertem à grande!
Desculpa Clotilde, chora à vontade, mas não vou mexer na tua merda...
Joel, 2 de maio de 1970, Anarquim de Baixo
A cada aldeia da região cabe a responsabilidade de construir a sua. Quanto às mulas, são fornecidas por um engenheiro espanhol, proprietário de uma casa de refeições, penso eu. Pelo menos recordo-me de ouvir o pai contar estórias aos amigos sobre “ a mulata que comeu no Pernabierta”. Nunca provei mulata, mas pela maneira como os olhos do papá cintilavam, deve ser um pitéu digno de registo!
A carrossa de Anarquim está uma verdadeira maravilha! Toda a aldeia se empenhou a fundo para apresentar a mais linda carrossa a concurso. Pintada em tons de amarelo e laranja, trata-se de um verdadeiro sol que ilumina as montanhas!Da minha parte fiz o que estava ao alcance das minhas capacidades: preguei, serrei, pintei, oleei as rodas, fiz as rédeas em corda de mentol, escovei a mula, lavei-lhe os dentes.
Como recompensa por todo o esforço que emprestei, a mãe decidiu por bem deixar-me em casa a limpar o rabo da minha irmã mais nova (a Clotilde), enquanto que o resto da irmandade foi contemplada com o direito de assistir ao grande arranque da competição!
E cá estou eu agora, a escrever ao som de gritos histéricos e desesperados da bébé, enquanto que os cabrões se divertem à grande!
Desculpa Clotilde, chora à vontade, mas não vou mexer na tua merda...
Joel, 2 de maio de 1970, Anarquim de Baixo
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