Obrigado ;)
quinta-feira
Nota
Obrigado ;)
Nova Vida
Afinal tenho 23 anos. Afinal o meu pai morreu ao meu lado, pois fomos os dois colhidos pelo autocarro. Afinal Anarquim não existe. Afinal a mãe é uma jóia de pessoa. Afinal até temos um certo dinheirinho cá em casa. Afinal não sou um escravo da lavoura.
Mas nunca esquecerei esta viajem…
Ah…Só mais uma coisa… Hoje FIZ O AMOR!!!!
Não era a ovelha do Quim Fisgas, mas elas são todas tão parecidas! ;)
Joel, 10 de Outubro de 2007, EM CASA.
A verdade
Aconselho os leitores a respirarem fundo antes de ler esta entrada no meu diário, que anuncio com nostalgia que será a última.
Advirto que será eventualmente chocante para pessoas mais sensíveis, mas como poderão à posteriori calcular, foi ainda mais chocante para mim saber A VERDADE.
Então aqui vai…
Quando reabri os olhos, não estava em casa, uma vez mais…ou estava?
Quatro paredes brancas rodeavam o meu corpo inerte. De resto, tudo era branco nesta estranha sala. Com o passar dos minutos, fui recuperando a visão, permitindo-me perceber um pouco melhor as características do espaço. À minha esquerda, uma janela entreaberta permitia que entrassem brechas de luz por entre os orifícios da persiana, assim como uma leve brisa amena. No chão, de azulejos cinza clarinho, dois tapetes farfalhudos de lã branca (lembrei-me da ovelhinha do Quim Fisgas) ladeavam a cama de ferro, branca claro está.
No canto, uma pequena mesa de apoio redonda, suportava o que parecia ser um santuário improvisado. Crucifixos, velas, terços, estatuetas da Nossa Senhora dos Vendavais, emprestavam um ambiente celestial àquele cenário.
Tratei então de me examinar. O meu braço esquerdo parecia um sistema de esgotos, tal era a quantidade de tubagens que dele entravam e saiam.
Enquanto tratava de compreender a função da máquina onde se uniam os tubos, que fazia correr um estranho líquido (para não falar no irritante “pipipi pipipi” que não se cansava de repetir), alguém entrou no quarto.
CHEGUEI AO CÉU! – Pensei assim que vi a esplendorosa mulher que me sorria com a dentição mais perfeita que já vi em toda a minha vida. De resto, perfeição é a palavra para descrever tudo nesta mulher. Os seios, os lábios, as ancas, tudo.
-“Bom dia Joel. É bom ver-te regressar a nós. Deves estar confuso…É natural…Mas não te preocupes…” – Disse-me enquanto me acariciava a face – “ Em breve estarás a 100 %! Estás preparado para receber os teus familiares? Estão desejosos de te ver.”
Devem estar devem…A mãe então não deve ver a hora de me dar uma costa de mão nas trombas…mas vá que se lixe…Assenti com a cabeça à mulher, e ela retirou-se para chamá-los.
Sentia-me terrivelmente cansado, sem forças sequer para erguer os dedos da mão.
Quando senti alguém rodar a maçaneta da porta o coração disparou…não sei se de emoção, de medo, de quê....Mas quando vi entrar as pessoas, uma por uma, senti-me cair num poço sem fundo.
A mãe estava bela, como nunca o foi. Sem bigode, de cabelo minuciosamente penteado, trazendo o mais belo dos vestidos que alguma vez havia visto.
O Rafa parecia um homenzinho, penteado de risco ao lado, calções aos quadrados verdes e negros, meias azuis até meio da canela e uma camisa branca bastante bonita.
Carmelinda e Clotilde estavam vestidas de igual, com uma linda saia vermelha e uma blusa creme.
Todos eles não eram eles. Estou louco. Onde estou??? A minha respiração ficou mais e mais ofegante, e o “pipipi pipipi” da máquina fez questão em acompanhar o ritmo das minhas batidas cardíacas.
-“Calma Joel, já te explicamos tudo”- Interveio a majestosa enfermeira.
Depois de alguns minutos, durante os quais procurei uma justificação lógica para o facto de a cambada de camafeus se ter transformado numa família adorável à vista desarmada, não aguentei mais, e implorei:
-“Por favor, alguém que me explique o que se passou…não aguento mais esta loucura.”
Nesse preciso instante, entra no quarto um indivíduo que me parecia ser familiar, usando uma bata branca.
“- Joel, boa tarde! É bom ter-te de volta!” – Exclamou sorridente enquanto me dava duas pancaditas amistosas no ombro esquerdo. – “Sou o Doutor Tamúdio” – Rematou.
“- Avô?” – Soltei, quase instintivamente.
“-Não exactamente meu rapaz…” – Ripostou sorrindo de novo. Devo acrescentar que aquele sorriso me estava a meter um certo nojo.
“-Joel, em que ano estamos?” – Perguntou com uma voz cínica. Em que ano estamos??? Mas que merda de pergunta era esta??
“- 1970 meu cabrão!!” – Respondi, tentando ser o mais agressivo possível. Ao ouvir esta resposta, a mãe (será mesmo a mãe?) desatou num pranto, sendo desde logo consolada pelos restantes filhos. Foi neste momento que me apercebi que se calhar algo não batia certo ali. Ou aqui…dentro da minha cabeça.
-“ Joel, estamos em 2007. Estiveste num coma profundo durante 7 meses. Foste atropelado por um autocarro na Avenida Lourenço Peixinho, e não mais voltaste a nós… até hoje. Mais tarde gostava que me contasses se te lembras de alguma coisa destes últimos tempos, mas por agora, descansa…Volto mais tarde”.
Algo me diz que não vai ser fácil contar-lhe o que vivi nestes tempos…
Joel, 5 de Outubro de 2007, quarto de hospital.
Não entendo nada...
Já longe do acampamento do velho, num farto eucaliptal, parei para descansar.
Necessitava também reflectir, sobre toda a peripécia em que se tinha tornado a minha vida.
Num dia sou resgatado por um urso, no outro reencontro o avô. Como se não fosse suficiente, este conta-me que o urso é o meu pai. Para fechar em beleza, o velho nem sequer era meu avô.
Hum…sabia todavia o meu nome. Algo não bate certo. Estou a ficar louco!
-Tirem-me daqui! Tirem-me daquiiiii! - grito para os céus, de mãos na cabeça.
Nos instantes imediatos, sinto que algo me sobe pelo braço...até que chega ao ombro direito.
De esguelha, tento perceber o que é. Trata-se de uma cigarra, vestida com uma magnifica escama verde fluorescente. Aproxima-se do meu pescoço, sobe pé ante pé para a minha orelha, e sussurra-me com uma voz terna e doce:
- Voltarás agora! Boa Viagem!
E nesse momento, inexplicavelmente, sou sugado com violência para o céu, enquanto que uma sensação de dormência se apodera da minha carne, dos meus ossos.
O mundo desvanece-se.
A luz muda, a névoa dissipa-se, escuto sussurros de vultos desfocados. O esforço é enorme para manter a pálpebra semi-aberta.
Pouco a pouco, as formas tornam-se mais evidentes. Sinto uma pequena mão, como se a de um bébé se tratesse, e alguém grita, estridentemente:
“Mãaaaaaaaaaaaaaee! O Joel acordou! Mãaaaaaaaaaaae! O Joel está vivo!”.
Num momento a sala repleta-se. Toda a gente me abraça, quase me sufoca. Alguém me mede também a pulsação, antes de exclamar:
“Está salvo minha senhora, o seu menino voltou para nós…”
Alguém afasta os demais e se prepara para se debruçar sobre mim. Distingo apenas uma figura de tom escarlate, e um farto bigode.
- Merda...É a mãe! - Pensei enquanto um arrepio de pânico me rasga a espinha. Já vou apanhar, deduzi naturalmente.
Mas não…
A mãe afagou-me o cabelo, e com toda a suavidade e ternura, beijou-me as faces, enquanto as segurava com as mãos trémulas.
“Pensava que te perdia mê filho…” – murmurou, com uma voz rouca e cansada.
Não entendo nada…o mundo desfoca e apaga-se de novo.
Joel, 1 de Outubro de 1970 (será????), Em estado de choque, sem saber bem se está em casa.
ADN(ádega)
A minha alma está parva.
Saber que o meu pai reencarnou num urso maquiavélico, que pretende com o uso da força juntar a si os entes queridos é algo que não cabe na cabeça de uma pessoa minimamente sã.
Será que o avô está demente? Hum…será que o avô é de facto o avô?
Havia que fazer a prova.
Quando era pequeno, recordo-me da impressionante história de como o avô logrou sobreviver à célebre Guerra da Baía dos Alicates, que opôs anarquinos e pseudo-liberais.
O avô Tamudio participou na mesma, desempenhando o papel de juiz auxiliar.
Numa jogada mais polémica, um anarquino disparou um tiro antes de os pseudo-liberais formarem barreira.
Tamudio, distraído, validou de imediato o disparo, anunciando a morte do atleta, tendo consequentemente ordenado a sua queima com gasolina.
A ira tomou conta dos pseudo-liberais, sendo que o seu adversário passou a ser Tamudio, e não os Anarquinos.
Num ápice, o avô viu-se na mira de centenas de guerreiros enfurecidos. Não havia outra hipótese senão a de fugir, o mais rápido que conseguisse.
Miraculosamente, alcançou escapar com vida ao ataque, tendo no entanto levado como recordação três chumbos que se alojaram na sua nádega esquerda.
Portanto, para saber se a carcaça que ao meu lado ressonava como um porco selvagem se tratava de facto de Tamúdio, teria que lhe ver a nádega.
Não era o plano mais agradável do mundo, mas tinha que o fazer.
Assim, delicadamente, como se desnudasse uma jovem princesa adormecida, baixei-lhe as calças.
Marcas de balas? Nem vê-las.
Apenas uma frase tatuada que dizia:
"Porque raio me estás a ler as nádegas?”
Hum…está na hora de partir.
Adeus carcaça.
Joel, 30 de Setembro de 1970, Bosque.
Progenitor Selvagem
O reencontro com o vôvô permitiu que se acendessem luzes nos corredores escuros da minha memória.
Durante duas horas, explicou-me o porquê do seu desaparecimento, de quase uma década.
A 12 de Maio de 1963 – contou-me – o avô cumpria mais um dia da sua rotineira vida: encontrava-se no prado dos encantos, situado nos arredores de Anarquim, a colher pétalas de alecrim para vender no mercado de Carrazedo do Milheiral, famoso pela abundante presença de feirantes nacionais e internacionais, que ali vendiam de tudo e algo mais.
O arraial atraía visitantes de todas as partes, e gerava-se uma convivência e uma troca de bens e ideias tal, que, conta-se, dali saíram grandiosas invenções técnicas e pensamentos vanguardistas. A título de exemplo, foi daquele fervilhar de interacções que surgiu a hoje comum lâmpada de diospiro, ou a máquina de descascar cerejas.
Também ali se conheceram alguns sinais da emergente emancipação do direito da Mulher, muito por obra de Gin Tunico, cigano romeno, que convenceu as gentes de que à mulher deveria ser permitida a presença na sala de estar de qualquer lar, entre as 15 e as 17 horas da tarde.
Pois acontece que no dia doze do quinto mês do sexagésimo terceiro ano do século vinte, a rotina do avô deixou de o ser.
Carregava três cestos repletos de pétalas, e dirigia-se para a minha casa, onde vivia, entre a cozinha e a porta da rua.
A mãe havia-lhe preparado um caldo de beterraba, que o velhote tanto apreciava comer quando regressava extenuado do campo.
Mas nesse dia, não pôde saborear a iguaria (saboreou a mãe, diga-se de passagem. Recordo-me de lhe questionar porque comia o prato do avô, pergunta à qual ela me ripostou com uma bofetada bem assente nas fusas).
Nesse dia, que até hoje ninguém soubera explicar como e porquê, o avô não regressou.
Agora já sei…
Havia sido arrastado violentamente pelo mesmíssimo urso que me aprisionou também, tendo ficado seu prisioneiro durante quase sete anos, contou-me.
Quando o confrontei com a incrível coincidência de me ter sucedido o mesmo, a sua resposta não poderia ser mais aterradora…
“Jueli, atão tu na vês que o urso é o tê pai?”
Joel, 29 de Setembro de 1970, floresta.
Tamudio respira, todavia
A passagem pelo bosque acabou por ser bastante mais rápida do que supunha. Para isso, contei com a preciosa “ajuda” de um ramo de ameixeira.
Explico-me: Caminhava a grande velocidade, por entre enormes árvores, tentando eliminar qualquer hipótese de ser novamente resgatado pelo urso, quando tropecei no referido ramo. O tropeção originou uma queda, que originou um rebolão por uma encosta abaixo, que originou o meu encontro com um rio, no qual se originava uma sequencia de cascatas poucos metros depois. E aí fui, levado pela portentosa corrente, durante alguns quilómetros.
Quando finalmente a corrente começou a abrandar, consegui alcançar uma das margens.
Enquanto restabelecia o fôlego, notei que a pouca distancia de aí se descortinava uma coluna de fumo branco. Há gente por perto! – Pensei.
E assim o era…seguindo o trilho do fumo, consegui alcançar a fogueira, onde encontrei um velho, muito velhinho por sinal, a falar (aparentemente) sozinho.
Fui-me aproximando, com alguma reticência, até que resolvi encetar um diálogo com a carcaça.
- Olá?! – Lancei, com um misto de medo e de vergonha.
- Ohhhh, táváver que na chigavas! – Respondeu, como se me esperasse à horas a fio. – “Por onde raios andastes? O chá de mórcego já tá frio rapaz! Anda daí, preparo-te tambein a moela de doninha, que tá mai tenra do que nunca! Vêns esganado, não?”
O ancião estava claramente equivocado. Jamais o tinha visto…receei contudo que dizer-lhe que não era eu quem ele esperava o pudesse fastidiar.
Assim, tentei assumir a personagem por quem o velho me tomava.
-Sim, venho com larica! – Disse com uma voz firme. – Desculpó atraso, distrai-me ca joras!- acrescentei, tentado imitar o mais perfeitamente possível o sotaque do velho.
-Vem cá dar dois beijos ao té avô caralho! – Ripostou enquanto estendia os braços para o infinito.
Um arrepio percorreu a minha espinha. Aproximar-me da carcaça e beijar-lhe as faces, fazendo-me passar pelo seu neto, não seria demasiado arriscado? - Que se foda! - Murmurei para mim mesmo enquanto me dirigia a passos largos para junto do velho.
A proximidade permitiu-me reconhecer e analisar melhor a sua fisionomia. Não pude deixar de reparar nas suas enormes cicatrizes que testemunhavam algo de incrível que teria acontecido ao velho. Era como se a sua cara tivesse sido rasgada ao meio e cozida posteriormente!
Era também cego.
O olho direito não estava presente e o esquerdo revelava uma retina completamente branca, através da qual muito duvido que se pudesse ver alguma coisa.
A sua cegueira explicava a crença de que era o seu neto quem ali se exibia.
Agora o receio era outro…Até que ponto o velho não reconheceria a fraude ao sentir as minhas faces tocar nas suas? Respirei fundo, agachei-me e tentei fazer o cumprimento de forma célere e eficaz.
-Ai Joelzinho, Joelzinho – murmurou com voz fragilizada – Julgava que na te ia ver nunca mais…Conta lá o tê vô, quanto tempo é que o urso te atracou?
Suores frios escorreram-me pelo rosto.
VÔ TAMUDIO! Estás vivo!!!!!!!!!!!
Joel, 28 de Setembro de 1970, com o avô.
A fuga
Ainda que o desnível de altura entre o membro de carne e osso e o de pau reles seja acentuado, a sensação foi outra quando alcancei pôr-me de pé.
Para compensar esta mínima alegria que sentia, uma violenta trovoada abateu sobre a região. Sem resguardo, fiquei três horas consecutivas a apanhar com chuva na pinha.
Quando finalmente surgiu uma clareira, fastidiado pela tortura de água, pontapeei violentamente a rocha da gruta, com a perna de pau.
Nesse instante, encontrei o passaporte para a liberdade. A fricção do pau com a rocha molhada, deflagrou uma leve chama na ponta da perneta, com a qual consegui queimar a corda que me prendia.
Era tempo de apagar a chama na poça do lado e correr que nem um desalmado rumo ao bosque e ao retomo da viagem.
ADEUS BOLA DE PELO RANSOSA!
Joel, 27 de Setembro de 1970, rumo a Anarquim.
O plano
É tempo de fazer render o (muito) tempo livre que me sobra desta vida de clausura.
Não posso permitir que a besta peluda me prive da liberdade.
Afortunadamente, a corda permite-me alcançar uma pequena abacateira, da qual comecei a extrair pequenos ramos, os quais uni com resina da mesma…
Conto ter a perna de pau operacional em breve. E nesse momento, será tempo de partir. Dê por onde der! Doa por onde doer!
Até já liberdade! (Olá urso, que tal foi o teu dia?)
Joel, 20 de Setembro de 1970, ainda na Montanha.
Em cativeiro
Como seria de esperar, não só não alcancei o objectivo de seguir viagem em paz, como também me vi privado de me afastar mais de 10 metros da gruta (o comprimento da corda que me prende pelo pescoço, que nem uma mula desgraçada).
Ao final da tarde, amavelmente, o cabrão do urso besuntou-me a cara com mel antes de recolher á toca, permitindo-me assim sacear a fome.
Está frio, creio que vou recolher à toca também...
Joel, 17 de Setembro de 1970, Algures na montanha
O abrigo
Acabei por alcançar as ditas montanhas justamente quando os últimos raios de sol aqueciam uma das suas encostas. A viagem foi duríssima, uma vez que a minha nova fisionomia me obriga a que me desloque ao pé-coxinho (neste momento creio que me sagraria campeão mundial do jogo da macaca). Cheguei verdadeiramente exausto e desidratado. Aproveitando as réstias de luz, procurei encontrar um local adequado para dormir. Ao cabo de poucos minutos, encontrei um pequeno orifício entre enormes calhaus que me pareceu ser um local aceitável para me aninhar. Pelo menos estava bem protegido do vento...
E assim foi, de facto vento foi coisa que não senti ali. A bem dizer, foi mais a falta dele que senti durante a noite…de ar, quero dizer…
O pânico começa a apoderar-se de mim…por favor, que quando amanhecer, o urso pardo que me abraça e me lambe a cara com tanto amor me deixe partir em paz e sossego! Não estou com cabeça para relações…
Joel, 15 de Setembro de 1970, na casa do urso.
Dia 1
Não podia ser eu aquele rosto devolvido pelo reflexo…um esqueleto putrefacto, de cabelos fartos e sem dentição. Também o mistério do desaparecimento da perna esquerda me deixou um pouco abalado. Mas que raio me aconteceu? Quando penso num futuro recente, entro num imenso vácuo, onde a incógnita reina a seu belo prazer…
As respostas surgirão quando tiverem que o fazer, espero.
Adiante. Há que chegar a Anarquim o quanto antes…não sei porquê, mas tenho a sensação que cada segundo que passa é mais uma brutal pancada seca na nuca que vou apanhar da mãe.
E agora? Para que direcção caminhar? Vou seguir o sol…nas montanhas que beijam o horizonte logo encontrarei onde dormir...
A caminho!
Joel, 14 de Setembro de
Das trevas rumo à luz
Onde estive? Não sei. Tractor…sim, tractor! Ia para Espanha.
Onde estou? Boa pergunta.
Para onde vou? Anarquim, claro está!
Por onde? Sei lá! (Se não sei onde estou também não sei por onde ir!!)
Venham chuvas miudinhas, tempestades catastróficas, sóis capazes de derreter o mais duro dos metais, mas perdido, moribundo e inválido eu não fico aqui mais.
A caminho Joel! Vamos! Vamos!
Não vai ser fácil...dava tudo para saber onde está a minha perna esquerda...
Joel, 13 de Setembro de 1970, perdido.
A caminho de Espanha
Aproxima-se Agosto. Mês em que a escravatura a que estamos sujeitos duplica, triplica, quadruplica se for necessário. Este Agosto não seria excepção, claro está.
Trouxe no entanto uma nuance: a mãe decidiu alistar-me no grupo da JAQVPETQNCRUBM (Juventude Anarquenses Que Vai Para Espanha Trabalhar Que Nem Cães Recebendo Uma Bela Merda). O grupo foi criado há já vários anos, aquando da realização do congresso Ibérico da ACM (Aldeias no Cú do Mundo) em Capataz de Alfornel.
Reza a história que se estabeleceram fortes laços de amizade entre os representantes de Anarquim e de Penedez del Cuerno, aldeia espanhola conhecida pelos seus magníficos campos de tomatinhos agridoces. O motivo desta amizade, dizem os anais, foi nem mais nem menos que uma garrafa de água-pé do Arménio Pereira, na altura presidente da junta de Anarquim. Parece que depois das habituais conferências e discursos do congresso (que tardaram mais de três horas, devido à eternidade que demorou o discurso do representante de Penedez (Juan Pablo Coño), fruto da sua insuportável e interminável gaguez) os representantes das distintas comunidades se reunirão para um almoço-convívio, onde lhes foi servida açorda de pata de texugo.
Incomodado pelo excesso de sal aplicado no cozinhado, o Coño não pôde conter o seu desagrado, lançando injúrias brejeiras contra a cozinheira. Acontece que a responsável pelo manjar era precisamente Cátia Adelaide, esposa de Arménio.
Arménio não tem mais nada: levanta-se, compõe o colarinho da camisa e PIMBA! Espeta a garrafa de água-pé que estava mais à mão nos cornos do Coño.
A confusão instala-se. Coño grita, esbraceja, jurando que mata Arménio. Até que alguém constata que Coño não está mais a gaguejar! Ao escutar isto, Coño lá se acalma, respira fundo, e tenta falar…As palavras saem-lhe com toda a fluidez da boca! Milagre! Coño abraça-se se Arménio, e a audiência que os rodeia não evita que se lhe escapem suspiros e lágrimas até.
A partir desse dia, jurou-se sobre aquela mesa amizade eterna entre Anarquim e Penedez del Cuerno.
E pronto, fruto desta merda, lá estou eu a caminho de Espanha, amontoado com outros 15 putos raquíticos num tractor que nos levará para a apanha do tomate.
Ainda antes da fronteira, começaram os problemas. O tractor parecia não ter força para subir uma íngreme encosta que havia que transpor.
-“ Arre fodaisee! Temus ca munta carga! Oh sês putos do cuaralhe, toca a atirar as vossas móxilas pó xão, se na na subimos!” – Esclamou a besta que conduzia a máquina.
Olhámo-nos surpreendidos, mas acatámos a decisão do timoneiro…era melhor não contrariar uma besta como aquelas.
Após nos vermos livres da bagagem, o atrasado mental mete uma primeira no tractor, que aos poucos parece começar a vencer o enclave. È porém sol de pouca dura. Uns metros mais à frente o veiculo volta a parar.
- “Arre viscaros e corrais!”- Gritou cada vez mais irado. –“Temos que deixar gente plo cuaminho!” –“Na á otra suloção!”.
Não podia aceitar esta situação. Era o que faltava ficar agora apeado no meio do nada só porque o cabrão do velho não tem mãos pó caralho do tractor. Não podia ficar calado:
“- Olhe lá! Você tá parvo ou faz-se?? Ninguém vai ficar pelo caminho!!!” – Um silêncio ensurdecedor abateu-se sobre o local. Pareceu-me ouvir o ecoar de um abutre bem ao longe….
Humm, quiças já me fudi…pensei enquanto vi o velho caminhar na minha direcção. Foi-se aproximando, até que me agarrou o braço, cravando nele as suas asquerosas unhas. “-Só por causa das merdas, és já tu que sais daqui mê ganda urdinário!”
Dizendo isto, impulsionou-me para fora do reboque do tractor como se fosse um cavaco de madeira. Lembro-me de ver o mundo de pernas para o ar, durante breves momentos, até que a névoa tomou conta dos meus olhos.