A passagem pelo bosque acabou por ser bastante mais rápida do que supunha. Para isso, contei com a preciosa “ajuda” de um ramo de ameixeira.
Explico-me: Caminhava a grande velocidade, por entre enormes árvores, tentando eliminar qualquer hipótese de ser novamente resgatado pelo urso, quando tropecei no referido ramo. O tropeção originou uma queda, que originou um rebolão por uma encosta abaixo, que originou o meu encontro com um rio, no qual se originava uma sequencia de cascatas poucos metros depois. E aí fui, levado pela portentosa corrente, durante alguns quilómetros.
Quando finalmente a corrente começou a abrandar, consegui alcançar uma das margens.
Enquanto restabelecia o fôlego, notei que a pouca distancia de aí se descortinava uma coluna de fumo branco. Há gente por perto! – Pensei.
E assim o era…seguindo o trilho do fumo, consegui alcançar a fogueira, onde encontrei um velho, muito velhinho por sinal, a falar (aparentemente) sozinho.
Fui-me aproximando, com alguma reticência, até que resolvi encetar um diálogo com a carcaça.
- Olá?! – Lancei, com um misto de medo e de vergonha.
- Ohhhh, táváver que na chigavas! – Respondeu, como se me esperasse à horas a fio. – “Por onde raios andastes? O chá de mórcego já tá frio rapaz! Anda daí, preparo-te tambein a moela de doninha, que tá mai tenra do que nunca! Vêns esganado, não?”
O ancião estava claramente equivocado. Jamais o tinha visto…receei contudo que dizer-lhe que não era eu quem ele esperava o pudesse fastidiar.
Assim, tentei assumir a personagem por quem o velho me tomava.
-Sim, venho com larica! – Disse com uma voz firme. – Desculpó atraso, distrai-me ca joras!- acrescentei, tentado imitar o mais perfeitamente possível o sotaque do velho.
-Vem cá dar dois beijos ao té avô caralho! – Ripostou enquanto estendia os braços para o infinito.
Um arrepio percorreu a minha espinha. Aproximar-me da carcaça e beijar-lhe as faces, fazendo-me passar pelo seu neto, não seria demasiado arriscado? - Que se foda! - Murmurei para mim mesmo enquanto me dirigia a passos largos para junto do velho.
A proximidade permitiu-me reconhecer e analisar melhor a sua fisionomia. Não pude deixar de reparar nas suas enormes cicatrizes que testemunhavam algo de incrível que teria acontecido ao velho. Era como se a sua cara tivesse sido rasgada ao meio e cozida posteriormente!
Era também cego.
O olho direito não estava presente e o esquerdo revelava uma retina completamente branca, através da qual muito duvido que se pudesse ver alguma coisa.
A sua cegueira explicava a crença de que era o seu neto quem ali se exibia.
Agora o receio era outro…Até que ponto o velho não reconheceria a fraude ao sentir as minhas faces tocar nas suas? Respirei fundo, agachei-me e tentei fazer o cumprimento de forma célere e eficaz.
-Ai Joelzinho, Joelzinho – murmurou com voz fragilizada – Julgava que na te ia ver nunca mais…Conta lá o tê vô, quanto tempo é que o urso te atracou?
Suores frios escorreram-me pelo rosto.
VÔ TAMUDIO! Estás vivo!!!!!!!!!!!
Joel, 28 de Setembro de 1970, com o avô.
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