quinta-feira

A caminho de Espanha

Aproxima-se Agosto. Mês em que a escravatura a que estamos sujeitos duplica, triplica, quadruplica se for necessário. Este Agosto não seria excepção, claro está.

Trouxe no entanto uma nuance: a mãe decidiu alistar-me no grupo da JAQVPETQNCRUBM (Juventude Anarquenses Que Vai Para Espanha Trabalhar Que Nem Cães Recebendo Uma Bela Merda). O grupo foi criado há já vários anos, aquando da realização do congresso Ibérico da ACM (Aldeias no Cú do Mundo) em Capataz de Alfornel.

Reza a história que se estabeleceram fortes laços de amizade entre os representantes de Anarquim e de Penedez del Cuerno, aldeia espanhola conhecida pelos seus magníficos campos de tomatinhos agridoces. O motivo desta amizade, dizem os anais, foi nem mais nem menos que uma garrafa de água-pé do Arménio Pereira, na altura presidente da junta de Anarquim. Parece que depois das habituais conferências e discursos do congresso (que tardaram mais de três horas, devido à eternidade que demorou o discurso do representante de Penedez (Juan Pablo Coño), fruto da sua insuportável e interminável gaguez) os representantes das distintas comunidades se reunirão para um almoço-convívio, onde lhes foi servida açorda de pata de texugo.

Incomodado pelo excesso de sal aplicado no cozinhado, o Coño não pôde conter o seu desagrado, lançando injúrias brejeiras contra a cozinheira. Acontece que a responsável pelo manjar era precisamente Cátia Adelaide, esposa de Arménio.

Arménio não tem mais nada: levanta-se, compõe o colarinho da camisa e PIMBA! Espeta a garrafa de água-pé que estava mais à mão nos cornos do Coño.
A confusão instala-se. Coño grita, esbraceja, jurando que mata Arménio. Até que alguém constata que Coño não está mais a gaguejar! Ao escutar isto, Coño lá se acalma, respira fundo, e tenta falar…As palavras saem-lhe com toda a fluidez da boca! Milagre! Coño abraça-se se Arménio, e a audiência que os rodeia não evita que se lhe escapem suspiros e lágrimas até.

A partir desse dia, jurou-se sobre aquela mesa amizade eterna entre Anarquim e Penedez del Cuerno.

E pronto, fruto desta merda, lá estou eu a caminho de Espanha, amontoado com outros 15 putos raquíticos num tractor que nos levará para a apanha do tomate.

Ainda antes da fronteira, começaram os problemas. O tractor parecia não ter força para subir uma íngreme encosta que havia que transpor.

-“ Arre fodaisee! Temus ca munta carga! Oh sês putos do cuaralhe, toca a atirar as vossas móxilas pó xão, se na na subimos!” – Esclamou a besta que conduzia a máquina.

Olhámo-nos surpreendidos, mas acatámos a decisão do timoneiro…era melhor não contrariar uma besta como aquelas.

Após nos vermos livres da bagagem, o atrasado mental mete uma primeira no tractor, que aos poucos parece começar a vencer o enclave. È porém sol de pouca dura. Uns metros mais à frente o veiculo volta a parar.

- “Arre viscaros e corrais!”- Gritou cada vez mais irado. –“Temos que deixar gente plo cuaminho!” –“Na á otra suloção!”.

Não podia aceitar esta situação. Era o que faltava ficar agora apeado no meio do nada só porque o cabrão do velho não tem mãos pó caralho do tractor. Não podia ficar calado:

“- Olhe lá! Você tá parvo ou faz-se?? Ninguém vai ficar pelo caminho!!!” – Um silêncio ensurdecedor abateu-se sobre o local. Pareceu-me ouvir o ecoar de um abutre bem ao longe….

Humm, quiças já me fudi…pensei enquanto vi o velho caminhar na minha direcção. Foi-se aproximando, até que me agarrou o braço, cravando nele as suas asquerosas unhas. “-Só por causa das merdas, és já tu que sais daqui mê ganda urdinário!”

Dizendo isto, impulsionou-me para fora do reboque do tractor como se fosse um cavaco de madeira. Lembro-me de ver o mundo de pernas para o ar, durante breves momentos, até que a névoa tomou conta dos meus olhos.

Joel, 31 de Julho de 1970, a caminho de Espanha (eu ia)

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