quinta-feira

Progenitor Selvagem

O reencontro com o vôvô permitiu que se acendessem luzes nos corredores escuros da minha memória.

Durante duas horas, explicou-me o porquê do seu desaparecimento, de quase uma década.

A 12 de Maio de 1963 – contou-me – o avô cumpria mais um dia da sua rotineira vida: encontrava-se no prado dos encantos, situado nos arredores de Anarquim, a colher pétalas de alecrim para vender no mercado de Carrazedo do Milheiral, famoso pela abundante presença de feirantes nacionais e internacionais, que ali vendiam de tudo e algo mais.
O arraial atraía visitantes de todas as partes, e gerava-se uma convivência e uma troca de bens e ideias tal, que, conta-se, dali saíram grandiosas invenções técnicas e pensamentos vanguardistas. A título de exemplo, foi daquele fervilhar de interacções que surgiu a hoje comum lâmpada de diospiro, ou a máquina de descascar cerejas.

Também ali se conheceram alguns sinais da emergente emancipação do direito da Mulher, muito por obra de Gin Tunico, cigano romeno, que convenceu as gentes de que à mulher deveria ser permitida a presença na sala de estar de qualquer lar, entre as 15 e as 17 horas da tarde.

Pois acontece que no dia doze do quinto mês do sexagésimo terceiro ano do século vinte, a rotina do avô deixou de o ser.

Carregava três cestos repletos de pétalas, e dirigia-se para a minha casa, onde vivia, entre a cozinha e a porta da rua.

A mãe havia-lhe preparado um caldo de beterraba, que o velhote tanto apreciava comer quando regressava extenuado do campo.

Mas nesse dia, não pôde saborear a iguaria (saboreou a mãe, diga-se de passagem. Recordo-me de lhe questionar porque comia o prato do avô, pergunta à qual ela me ripostou com uma bofetada bem assente nas fusas).

Nesse dia, que até hoje ninguém soubera explicar como e porquê, o avô não regressou.

Agora já sei…

Havia sido arrastado violentamente pelo mesmíssimo urso que me aprisionou também, tendo ficado seu prisioneiro durante quase sete anos, contou-me.

Quando o confrontei com a incrível coincidência de me ter sucedido o mesmo, a sua resposta não poderia ser mais aterradora…

“Jueli, atão tu na vês que o urso é o tê pai?”

Joel, 29 de Setembro de 1970, floresta.


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