quinta-feira

A verdade

Aconselho os leitores a respirarem fundo antes de ler esta entrada no meu diário, que anuncio com nostalgia que será a última.
Advirto que será eventualmente chocante para pessoas mais sensíveis, mas como poderão à posteriori calcular, foi ainda mais chocante para mim saber A VERDADE.

Então aqui vai…

Quando reabri os olhos, não estava em casa, uma vez mais…ou estava?

Quatro paredes brancas rodeavam o meu corpo inerte. De resto, tudo era branco nesta estranha sala. Com o passar dos minutos, fui recuperando a visão, permitindo-me perceber um pouco melhor as características do espaço. À minha esquerda, uma janela entreaberta permitia que entrassem brechas de luz por entre os orifícios da persiana, assim como uma leve brisa amena. No chão, de azulejos cinza clarinho, dois tapetes farfalhudos de lã branca (lembrei-me da ovelhinha do Quim Fisgas) ladeavam a cama de ferro, branca claro está.

No canto, uma pequena mesa de apoio redonda, suportava o que parecia ser um santuário improvisado. Crucifixos, velas, terços, estatuetas da Nossa Senhora dos Vendavais, emprestavam um ambiente celestial àquele cenário.

Tratei então de me examinar. O meu braço esquerdo parecia um sistema de esgotos, tal era a quantidade de tubagens que dele entravam e saiam.

Enquanto tratava de compreender a função da máquina onde se uniam os tubos, que fazia correr um estranho líquido (para não falar no irritante “pipipi pipipi” que não se cansava de repetir), alguém entrou no quarto.

CHEGUEI AO CÉU! – Pensei assim que vi a esplendorosa mulher que me sorria com a dentição mais perfeita que já vi em toda a minha vida. De resto, perfeição é a palavra para descrever tudo nesta mulher. Os seios, os lábios, as ancas, tudo.

-“Bom dia Joel. É bom ver-te regressar a nós. Deves estar confuso…É natural…Mas não te preocupes…” – Disse-me enquanto me acariciava a face – “ Em breve estarás a 100 %! Estás preparado para receber os teus familiares? Estão desejosos de te ver.”

Devem estar devem…A mãe então não deve ver a hora de me dar uma costa de mão nas trombas…mas vá que se lixe…Assenti com a cabeça à mulher, e ela retirou-se para chamá-los.

Sentia-me terrivelmente cansado, sem forças sequer para erguer os dedos da mão.

Quando senti alguém rodar a maçaneta da porta o coração disparou…não sei se de emoção, de medo, de quê....Mas quando vi entrar as pessoas, uma por uma, senti-me cair num poço sem fundo.

A mãe estava bela, como nunca o foi. Sem bigode, de cabelo minuciosamente penteado, trazendo o mais belo dos vestidos que alguma vez havia visto.

O Rafa parecia um homenzinho, penteado de risco ao lado, calções aos quadrados verdes e negros, meias azuis até meio da canela e uma camisa branca bastante bonita.

Carmelinda e Clotilde estavam vestidas de igual, com uma linda saia vermelha e uma blusa creme.

Todos eles não eram eles. Estou louco. Onde estou??? A minha respiração ficou mais e mais ofegante, e o “pipipi pipipi” da máquina fez questão em acompanhar o ritmo das minhas batidas cardíacas.

-“Calma Joel, já te explicamos tudo”- Interveio a majestosa enfermeira.

Depois de alguns minutos, durante os quais procurei uma justificação lógica para o facto de a cambada de camafeus se ter transformado numa família adorável à vista desarmada, não aguentei mais, e implorei:

-“Por favor, alguém que me explique o que se passou…não aguento mais esta loucura.”

Nesse preciso instante, entra no quarto um indivíduo que me parecia ser familiar, usando uma bata branca.

“- Joel, boa tarde! É bom ter-te de volta!” – Exclamou sorridente enquanto me dava duas pancaditas amistosas no ombro esquerdo. – “Sou o Doutor Tamúdio” – Rematou.

“- Avô?” – Soltei, quase instintivamente.

“-Não exactamente meu rapaz…” – Ripostou sorrindo de novo. Devo acrescentar que aquele sorriso me estava a meter um certo nojo.

“-Joel, em que ano estamos?” – Perguntou com uma voz cínica. Em que ano estamos??? Mas que merda de pergunta era esta??

“- 1970 meu cabrão!!” – Respondi, tentando ser o mais agressivo possível. Ao ouvir esta resposta, a mãe (será mesmo a mãe?) desatou num pranto, sendo desde logo consolada pelos restantes filhos. Foi neste momento que me apercebi que se calhar algo não batia certo ali. Ou aqui…dentro da minha cabeça.

-“ Joel, estamos em 2007. Estiveste num coma profundo durante 7 meses. Foste atropelado por um autocarro na Avenida Lourenço Peixinho, e não mais voltaste a nós… até hoje. Mais tarde gostava que me contasses se te lembras de alguma coisa destes últimos tempos, mas por agora, descansa…Volto mais tarde”.

Algo me diz que não vai ser fácil contar-lhe o que vivi nestes tempos…

Joel, 5 de Outubro de 2007, quarto de hospital.

1 comentário:

MilesBassoon disse...

Finalmente voltou. Fantástico! Mt bom mesmo. Viva anarquim de baixo, essa terra mítica por onde já passamos todos. E quem ainda não passou.. bem, n é cá da malta! olé! mão esquerda é Jesus!

By the way.. publicita o meu blog nos teus links.. tb tou de volta!
viva a geração BlogVerde!! =P jah

www.ofagoteiro.blogspot.com